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20 anos sem Paulo Freire

No último dia 02 de maio completaram-se vinte anos da morte de Paulo Freire. Há no Brasil e no exterior inúmeras pessoas e várias instituições que se dedicam ao estudo da obra do educador pernambucano. Algumas divergências pontuais se materializam entre alguns. Particularmente não me considero integrante de nenhum “clube” que defende a visão de educação de Freire. Questões menores de opinião, motivadas por egos inflados, podem levar sujeitos aparentemente respeitáveis a uma interminável luta em torno da defesa da “sua posição” em relação às ideias freireanas.
Eu apenas gosto de me inserir no plano da investigação científica compromissada, o que já me compraz. Estudei Paulo Freire no meu doutorado e aproximei suas ideias às ideias do filósofo alemão Jürgen Habermas no campo da ética. São intelectuais provenientes de contextos históricos e culturais diferentes. Mas há sintonias finas entre ambos, especialmente quando se colocam favoráveis a processos qualificados de comunicação que levem à consensos racionais em torno de normas e ações.
Mas foi na minha juventude, antes mesmo do ingresso na universidade, que tomei conhecimento da obra de Freire, por conta da militância na Pastoral da Juventude. Apesar do fato de no meu território de luta as ideias de Freire não fazerem eco na época, tive contatos com outras pessoas, de outros espaços, que me fizeram ver a importância das defesas de Paulo em favor da democracia participativa, dos direitos sociais e civis e de uma educação emancipatória.
Creio que hoje há um solo fértil, exposto na realidade crua de nossas atuais condições políticas, para reificar estes postulados, frente ao desmonte dos processos formais de educação em nosso país. Há oponentes despolitizados, que se valem de processos baixos de racionalidade para defender cruezas como uma “escola sem partido”, sustentando que Freire seria um dos estimuladores da doutrinação ideológica.
A falta de conhecimento e de leitura faz com que qualquer um fale qualquer coisa. Desminto com conhecimento esta falácia com os elementos da razão: a) Freire, apesar de suas posições à esquerda, defendia o diálogo e não considerava a possibilidade da neutralidade nos processos formais de educação; b) Freire era um defensor inconteste da seriedade científica, acadêmica, o rigorismo na aquisição do conhecimento; c) Freire é aceito e utilizado como referência em vários países que fizeram reformas educacionais profundas e demoradas e vinha sendo uma das guias na feitura de políticas públicas brasileiras de educação nos últimos anos; d) Freire nunca considerou sua obra acabada, propondo a necessidade de reinventá-la constantemente; e) Freire não se fundamentou apenas em um referencial teórico, ao contrário, dialogou com várias fontes de pensamento, do campo liberal democrático ao campo da esquerda – pensadores que militaram no campo liberal democrático nos EUA, como Richard Rorty, bem como o filósofo e linguista Noam Chomsky, conhecido por suas posições à esquerda, defendem parte das ideias de Freire.
Seriam muitos os argumentos para desmistificar postulados empobrecidos sobre o suposto viés doutrinador da obra de Freire. Aliás, seria totalmente contraproducente e incoerente com o conjunto de sua obra afirmar tal coisa.
Quais os indicativos da atualidade das propostas de Freire para a educação? Em primeiro lugar, como ele acreditava em processos democráticos de gestão, não seria necessário rever os procedimentos centralizadores da gestão educacional no Ministério da Educação? Se Freire nunca propôs um método específico para educar, com exceção do seu conhecido método de alfabetização, não seria o caso de avaliar os meios pelos quais se educa? Desta forma estaríamos considerando mais a filosofia educacional de Freire, entendendo que ele não prescreveu nehuma fórmula para ensinar. Não é exatamente isso que predomina na prática educativa, defesas apaixonadas de métodos de ensino? Isso significa que Freire era ametódico? De forma alguma. Apenas acompanhava os debates sobre o papel da ciência na elaboração de soluções para a vida prática, sem procurar de forma determinista indicar soluções mágicas para resolver problemas de ordem social por meio da educação.
No entanto, isso não torna Freire um educador apolítico e descomprometido com a realidade prática, ao contrário, suas bases filosóficas contribuem para entender educação como um processo de formação para o exercício da cidadania. Talvez possamos considerar as teorias de Freire como um reingresso nas bases clássicas da formação educacional, o que o coloca numa posição privilegiada. Divergências no próprio campo em que se inscrevia são normais, mas em relação às ideias gerais que se tem sobre educação e política educacional, temos que lamentar, Freire não tem o menor valor e nem mesmo é compreendido. Mas a construção de ideias sempre esteve inscrita no plano da história e da luta política. Creio que um dia Freire vingará, para além das experiências particulares já existentes com base em suas ideias.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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