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Andar Pela Cidade

Em 1977 comecei a trabalhar num escritório de contabilidade. Com quatorze anos, desempenhava a função eufemisticamente chamada de auxiliar de escritório, mas que todos identificavam como “Office Boy”. O centro da cidade parecia mágico. Andava com uma pastinha 007, pagando e recebendo contas. Ia a pé quando era perto e de ônibus quando tinha que ir mais longe. Foi uma aprendizagem estética e até diria historicizante, porque, de alguma maneira, admirava a paisagem, a arquitetura, o vaivém das pessoas, a vida que corria pelas veias da cidade. Essa sensação não estava localizada no centro. Também a sentia nos bairros.

A vida, por sinal, nos prega peças interessantes. Um dos comércios que eu visitava com frequência ficava num casarão antigo, hoje abandonado, na Rua Bom Jesus de Pirapora. Descobri recentemente que ao lado, num outro casarão velho, nasceu minha mãe.

Estive ali, naquele velho centro, trabalhando durante muitos anos. Depois do escritório ingressei no mundo das instituições bancárias. Das janelas daqueles prédios, dois deles bem defronte à catedral, visualizei muitos episódios. O cortejo fúnebre de Dom Gabriel Paulino Bueno Couto. Dentre os presentes, Dom Paulo Evaristo Arns. As tradicionais feirinhas de final de ano. Ah, quanta coisa! “Pelas janelas, pelas janelas, quem é ela, quem é ela?” A cidade pulsa e continua sobrevivendo às intempéries do tempo. O que é o tempo? Uma invenção cronológica, por um lado, mas um movimento dialético, por outro.

Tenho esse fascínio, que me persegue positivamente e sempre que posso, desfruto do prazer de andar pela cidade, só para olhar a paisagem, ver o movimento, mesmo que hoje já não existam mais aquelas velhas (e tão novas) arquiteturas e que o vaivém esteja contaminado pelo desejo quase sórdido de consumir. Graças a Deus temos olhos mais atentos, que pintam o centro com outras cores. Cores culturais e de intervenção urbanística saudável.

Entra ano, sai ano, vamos envelhecendo, mas há sempre uma expectativa de poder continuar a desfrutar do prazer de caminhar pelas ruas, sem compromisso, apenas para observar, sentir, passear com liberdade. Neste ano que começa são muitas expectativas. Uma delas é que a cidade continue a respirar, pulsar, interagir. Não mais pelo que acontece no centro. Há tantos lugares lindos, onde a história corre solta, nas periferias.

A ficção cronológica nos faz pensar que as transformações são contabilizadas milimetricamente. Os historiadores sabem que há a necessidade da paciência histórica. E o tempo? Ah, o tempo! Ele se encarrega de fazer as coisas acontecerem.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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