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Colonização Psicossocial

Freud apontava como uma das fontes de sofrimento o relacionamento interpessoal. Invadidos pela ideia da obrigação em sermos felizes, tentamos eliminar o que não contribui para que atinjamos esse suposto “estágio inevitável” da vida, a felicidade. Escolhemos objetos os mais variados para tamponar a falta e o mal estar. O sofrimento sempre continua presente, como sintoma. Muitos se agarram às soluções mirabolantes, como se amenizassem seu desespero existencial: o consumo, o trabalho, uma causa social, que funcionam como mecanismos de escamoteamento de sua angústia.

Como no discurso capitalista predomina a relação dos sujeitos com os objetos, essa relação é transferida para as relações interpessoais. O outro se torna “uma coisa” a quem nos referimos, como solução ou como causa do nosso sofrimento. Transferindo nossa demanda para esse outro, supomos que ele possa corresponder à nossa reivindicação, o “bem” que falta. A conexão solidária entre o sujeito e o outro se desconstrói no ensejo do ego narcísico do demandante.

Poucos se interessam em pensar e agir contra o próprio sofrimento. O foco da percepção centra-se num outro, suposto solucionador de demandas (o analista, o professor, o chefe, o marido, a esposa, o líder, o pai) que se torna único responsável pelo remédio contra o mal estar. Muitos acham necessário empunhar uma espada ética para solucionar todos os sofrimentos do mundo, como se isso fosse possível. Nesta cruzada, vale, paradoxalmente, em nome da suposta decência, investir na culpabilização indecente e nada solidária, contra o outro “que não faz” o que a criança psíquica deseja tanto: ser salva da dor e do sofrimento e “salvar os demais sofredores do mundo”.

Como afirmava Lacan, uma tarefa possível é a virada do discurso capitalista para o discurso do mestre, quando o analista promove a fala do sujeito para chegar a uma brecha que o leve ao tratamento e a uma saída para seu sofrimento. O tratamento analítico pode levá-lo a perceber sua condição de vítima queixosa e a não mais ter no outro o símbolo paterno de sua proteção esvaecida. Não se vendo como produtor de seu próprio sofrimento e do dos outros, não se implica na solução de sua demanda, terceirizando seu problema a partir da queixa. Na medida em que toma contato com a verdade de sua dor, a partir da ajuda psicoterápica, sai do campo da colonização mental capitalista da queixa e se insere na dinâmica da transferência com base na modalidade do amor e do saber. Como dizem muitos especialistas, ao invés de colocar-se no papel de vítima do outro, o sujeito passa a se questionar sobre o que fazer com seu desejo.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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