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Deus Está Morto?

Interpretações equivocadas sobre discursos filosóficos sempre tomam corpo entre os que não sabem ler além do que foi escrito. Nietzsche decretou a morte de Deus. E ao que se referia? Ao Deus da religião? Absolutamente não. Como um dos principais articuladores de um discurso esperançoso sobre o potencial humano, a partir da verificação da crise dos valores modernos e identificado como um niilista – ele próprio distinguiu vários tipos de niilismo, inclusive um niilismo como força de criação, não passivo -, Nietzsche se refere a essa crise, não ao Deus da religião, que é tomado como metáfora.

Incluiu, evidentemente, no bojo da crise de pensamento, a falência de uma perspectiva mística desencarnada que o cristianismo representava naquele momento, além da metafísica e do racionalismo, seus alvos preferidos. Sua crítica ecoa ainda hoje, na medida em que a dúvida sobre o potencial emancipatório da razão persiste. Nas últimas décadas, principalmente na última, teve lugar um certo discurso “pós-moderno”, que apontou os limites da razão, mas com tal pessimismo que, praticamente, foi decretada sua morte.

Há razões, evidentemente, para acreditarmos numa perda significativa de capacidade reflexiva nas últimas décadas, especialmente por força dos estratagemas utilizados para vilipendiar os processos educativos, os valores, a sociabilidade. No entanto, desesperançar não me parece ser de bom tom. Ao invés de acentuarmos um discurso moralizador e pessimista, com todas as boas razões para isso, há que se indicar que há forças humanas, racionais, capazes de, ainda, superar as mazelas de nossa ignorância política, ética.

Os desânimos frente à verificação dos limites do pensar são fruto da destruição de uma educação para a reflexão, para a abstração, que só tem lugar na vida escolar com o desafio da leitura, da promoção de uma compreensão larga de mundo. Ficou famoso um documentário em que um menino com dificuldades de aprendizagem toma contato com a leitura de um clássico, “Assim falava Zaratustra”.

No decorrer da história, ele se torna um representante nato da possibilidade de superação que a educação enseja – quando o desejo é despertado por um dos mais complexos filósofos da história. Meninos simples, por vezes, conseguem em pouco tempo, caso estimulados até mesmo “ao acaso”, superar seus professores, insensíveis ao que o contato sério com o saber teórico, abstrato, pode proporcionar.

Por essa razão, desacreditar o poder da abstração e da reflexão filosófica, querendo insistir que tudo deve possuir uma “pragmaticidade” é um verdadeiro despropósito. Com todas as críticas que se possa fazer a uma razão descolada da realidade, convenhamos, pelo menos por enquanto, Deus tem uma sobrevida.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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