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Do Porto dos Escravos ao Porto Seco: Jundiaí na história de São Paulo

Recebi um exemplar de uma obra da historiografia paulista, das mãos do meu amigo, professor César Nunes. Trata-se do estudo desenvolvido por Ernani da Silva Bruno, publicado em 1966, cujo título é “Viagem ao país dos paulistas – ensaio sobre a ocupação da área vicentina e a formação de sua economia e de sua sociedade nos tempos coloniais”. A obra faz parte de uma coleção denominada “Coleção documentos brasileiros”, da Editora José Olympio,  que era dirigida por Afonso Arinos de Melo Franco. Em 1963, o autor ganhara o prêmio Octávio Tarquínio de Sousa, como melhor ensaio do ano sobre tema brasileiro. A comissão julgadora foi composta por Francisco de Assis Barbosa, Antônio Cândido e Sérgio Buarque de Holanda, professores da Universidade de São Paulo.

Ernani da Silva Bruno era paranaense.  Formado em direito, atuou como jornalista até consagrar-se com seus importantes estudos sobre a história paulista. Um deles, o de estreia, “História e tradições da cidade de São Paulo”, prefaciado por Gilberto Freyre. Foi também o primeiro diretor do Museu da Casa Brasileira e membro da Academia Paulista de Letras.

Em “Viagem ao país dos paulistas”, Silva Bruno vai detalhadamente esmiuçando as condições econômicas da terra de São Vicente, ou o nosso atual estado de São Paulo, destacando a fundação das vilas e cidades a partir do litoral da região paulista, a chegada ao planalto paulista e as investidas pelo interior. Das origens remotas como porto de escravos, bugres, passando pelo ciclo do ouro, da cana de açúcar e do café, o estudo empreende esforços em demonstrar as relações entre grupos sociais (membros da igreja, colonizadores e indígenas, homens livres trabalhadores e fazendeiros, dentre outros), os hábitos alimentares, de vestuário, os meios de locomoção, na antiga Capitania de São Vicente até a consolidação da província e do estado. Estende-se por cinco períodos históricos: as origens pioneiras (1500-1580), o período de caça aos indígenas (1580-1640), a época da busca do ouro (1640-1730), o tempo de comércio de gado (1730-1775) e por fim, o momento da indústria do açúcar (1775-1822).

Após uma leitura atenta de toda a obra, retomei para observar as citações que se referem à história da cidade de Jundiaí. A primeira delas aparece no segundo período, quando menciona a existência de lugares para além do povoado de Santana do Parnaíba, dentre eles o núcleo de Jundiaí. Aqui já nos deparamos com uma imprecisão histórica, típica do momento em que a obra foi publicada, quando da referência à edificação de uma capela de Nossa Senhora do Desterro em 1615, pelos povoadores Rafael de Oliveira e Petronilha Antunes, que daria origem à Vila, localizando-a a menos de uma milha do rio Jundiaí, afluente do Tietê. Tal imprecisão cronológica e também relativa aos pioneiros da cidade se deve ao fato provável da utilização de fontes historiográficas de autores como Manoel Eufrásio de Azevedo Marques, que não poderia dispor de informações que vieram à tona nas décadas seguintes à publicação da obra, por meio do acesso a documentos que desfizeram equívocos relativos à origem da cidade. Nos anos 70, longa controvérsia se deu entre dois grupos fundamentais de memorialistas que discutiam ferrenhamente sobre estes dados, cada um deles alegando estar com a certificação da veracidade das informações. Evidentemente, tal controvérsia se dava em torno da visão comum, pouco crítica, da necessidade de provar datas e nomes, naquilo que se convencionou chamar de concepção linear e factual da história. No entanto, outras obras de grande quilate são utilizadas para respaldar os estudos do autor, especialmente as clássicas de Capistrano de Abreu, Aluísio de Almeida, André João Antonil, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Afonso de Taunay e Pedro Taques de Almeida Pais Leme.

Hoje sabe-se que havia dois Rafael de Oliveira. O velho, que era vereador na Cidade de São Paulo na década de 1640, e o moço. Petronilha Antunes nunca foi ligada a nenhum dos dois por laços matrimoniais. O primeiro já casado e o segundo, quatro anos mais moço que ela, comprovadamente casou-se depois. Mas há uma tradição em ligá-los de alguma forma e relacioná-los às origens de Jundiaí. Envolta a essa premissa também está a não comprovada lenda de um crime passional que teria forçado a saída de Rafael de Oliveira, o velho, de São Paulo para Jundiaí. Alguns estudiosos defendem até a probabilidade de Azevedo Marques ser disléxico, tendo invertido o ano de 1615 em relação a 1651, verdadeiro início do povoamento da região, afirmam. Estas intrigas cronológicas e factuais não nos interessam. Acredito haver elementos interessantes na obra em questão que merecem um destaque maior.

O autor se utiliza de Capistrano de Abreu para reificar o fato de que Jundiaí apontava para Goiás. No início do século dezessete não havia edificações de destaque na região, apenas uma maioria de casas cobertas de palha. Há também um correto apontamento, a partir do dado da elevação de Jundiaí à condição de Vila, em 1655, de dois caminhos de expansão a partir da cidade, um em direção ao Rio Atibaia e posteriormente em direção a Minas Gerais e outro em direção ao Rio Moji-Guaçu, o chamado caminho de Guaiazes, para atingir o sul de Minas Gerais em direção ao território goiano, quando no século dezoito descobriu-se a existência de ouro naquela região.

Passando para o momento do comércio de gado, Jundiaí aparece, na segunda metade do século dezoito, como ponto de referência para a região chamada de Campinas de Mato Grosso, paragem de viajantes que transitavam entre São Paulo e Goiás. Em 1769, Barreto Leme, morador de Jundiaí, solicitou a criação da freguesia de Campinas, que ocorreu apenas entre 1773 e 1774. Nesta mesma metade de século já há sinais de mudanças econômicas com a introdução da cana de açúcar em fazendas de Jundiaí e de Itu, de onde expandiria para Campinas, apesar da lavoura representar pouco frente aos intentos de exploração aurífera nas regiões de Goiás e Minas Gerais. Nem mesmo criação de gado e indústria teriam lugar neste momento. No entanto, as atividades comerciais encontraram espaço devido ao aumento populacional.

Há ainda a necessidade de sobrevivência buscando víveres na própria natureza, como a procura do pescado às margens do Tietê, inclusive de moradores de Sorocaba, Jundiaí e Itu, para chegar aos famosos Jaús, que eram pescados, salgados e picados em postas para serem comercializados posteriormente. Também existiam patos selvagens de grande proporção à beira deste rio, caçados para servir de alimento. No entanto, no final do século dezoito o pão de trigo era a base da alimentação.

No início do século dezenove, a expansão territorial a partir de Jundiaí se dá pela construção de caminhos que ligam a cidade à Piracicaba e toda região. Mas entre o final do século dezoito e início do dezenove, Jundiaí se torna local de organização de tropas que se dirigiam à região de Goiás. Muitos moradores se aventuravam com os tropeiros, que chegavam a juntar entre oitocentos e mil animais todos os anos na cidade, que passa a ser reconhecida como um “porto seco”. As tropas eram separadas em quarenta e oito animais de carga guiadas por um tropeiro, divididas em lotes de oito animais guiados por um “camarada”. Há registros também, no início do século dezenove, da existência de carros de transportes guiados por cinco ou seis juntas de bois. Esta nova realidade força a preocupação dos habitantes da região ocupados com seus afazeres, de que passem a existir melhores caminhos para o transporte de pessoas e mercadorias.

Neste momento já floresce a indústria açucareira na região e uma incipiente lavoura do café. Estamos nos referindo a fins do século dezoito e início do dezenove. Algumas outras atividades florescem, como o fabrico de louças pelos bugres, de curtume, cangalhas, selas, arreios. Os ferreiros passam a ser mais requisitados. Edificações com novas características, novas produções como a de tecidos, a de tabaco, de mobiliário, novos hábitos alimentares como o consumo de carnes, feijão e milho, eram aos poucos as mudanças introduzidas no cotidiano local.

Mesmo com todas essas transformações no plano econômico, poucos avanços se deram no campo das relações sociais. Se nos primórdios da colonização na capitania os Bandeirantes tiveram predomínio colonizador, a estrutura social se manteve quase intacta apesar da economia. Homens abastados, homens livres sem recursos e escravos indígenas ou negros. Eis as condições seculares de classe. Algumas variações ocorriam, inclusive na região de Jundiaí, entre os proprietários menos abastados, com a prática de mutirão na produção de algodão e no roçado para diversos tipos de plantações. O comércio de escravos negros sobrepujou ao dos indígenas, aumentando a resistência dos primeiros com a criação de Quilombos em várias localidades da região. Veio dessa época o costume de atribuir, sem a compreensão das diferenças culturais, um desajuste dos indígenas para a vida de trabalho, sendo tratados como “preguiçosos” ou “inaptos” para uma prática laboral que não condizia com seus costumes.

A obra de Ernani Silva Bruno, se não descontrói alguns mitos relativos à cidade de Jundiaí, fruto dos enganos referenciais, constitui-se como importantíssimo instrumento maior de análise das condições socioeconômicas dos diversos períodos da história de São Paulo. Jundiaí se insere neste itinerário histórico a partir do início do século dezessete, mas a historiografia ainda não se revelou eficaz na quebra de paradigmas caracterizadores da formação da localidade. Há uma grande lacuna nos estudos históricos da cidade, por conta desta tradição descritiva, linear e pouco analítica – resultante de vários fatores – e que desconsidera a presença negra, indígena e trabalhadora em geral, no discurso sobre a construção da vida local. Experiências de vida e trabalho, experiências culturais diversas e ricas, passam ao largo, em diversos momentos da produção de significados sobre o que é a cidade, promovendo uma versão “oficialesca” de uma Jundiaí dos barões, dos italianos bem-sucedidos. Relegadas ficam as significações próprias dadas ao viver na cidade, pelos trabalhadores têxteis, ferroviários e grupos de diversas origens étnicas. Se São Paulo partiu de um porto inicial em São Vicente, molhado pelas águas oceânicas em meio ao aprisionamento de bugres e negros, e que por meio do qual toda a expansão territorial se concretizou, Jundiaí continua um porto seco, do ponto de vista da necessidade de molhar a história com outras interpretações.

Crédito Foto: Cidade e Cultura

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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