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Enterrar os Mortos

Como exorta o preceito evangélico, “deixem que os mortos enterrem seus mortos”. Um dizer aparentemente obscuro, relacionado em tese à finitude da existência. O que mais teria a nos sugerir esta expressão? Há muitas mortes e muitos mortos que merecem enterro. Em nós mesmos, em cada um de nós, há mortes profundas, que precisam ser digeridas, ruminadas, assimiladas e aceitas. Socialmente também temos muitas mortes que não são assumidas. A morte do afeto, por exemplo, tomado de sobressalto por um outro que lhe ocupa o lugar. Muitas mortes, individuais e coletivas.

Se considerarmos como referência nos estudos da história contemporânea, da filosofia e das ciência sociais, o conceito de dialética hegeliana, veremos que nem todas as mortes sociais são enfrentadas com a devida veneração. Morreram os regimes autoritários, para florescer a vida democrática. Morreram as utopias mais radicais, para florescer a teoria do consenso. Mas estas mortes não chegaram a provocar o enterro de seus cadáveres. Sem o demérito da necessária contradição nos processos históricos, síntese e base de toda transformação social, há que se constatar que estamos envolvidos em mortes eternas, não assimiladas socialmente.

O pensamento raso, fruto da falta de amor à educação, promoveu essa descrença na morte, para fazer ressuscitar corpos ensandecidos, embebidos em desamor, numa mortalha fedorenta que não se dissipa com o tempo. Há aqueles que sonham com rupturas radicais em uma vida ainda recém nascida. Há aqueles que sonham poder equilibrar o que nos mata com o que nos salva. Há aqueles que imaginam poder salvar o mundo, a sociedade, com o apelo a deuses momentâneos, senhores da salvação.

Infelizmente, somos filhos de pais que não nos salvam nunca. E nunca salvarão. Infelizmente, queremos trocar de pais, como se eles fossem nosso grande super-homem, aquele sujeito distorcido que o nacional socialismo alemão viu em Nietzsche. Não, não existem heróis. Existe sim uma vida social, tensa por natureza, contraditória em sua essência, seja no capitalismo ou em qualquer outro sistema social, mesmo o “mais justo de todos”. Ainda estamos nos protegendo no escuro das cavernas da pré-história, como animais acuados em bandos que se atacam para defender a comida. O processo civilizatório, com todos os avanços que já houve, ainda está longe de se concretizar.
Sinceramente, cansei de ver inimigos em moinhos de ventos. Não somos nenhum Dom Quixote. Temos que admitir uma vez por todas. Talvez sejamos no máximo o Sancho Pança. Escudeiros desprotegidos, assustados com ameaças fantasmagóricas que partem de todos os lados. Precisamos enterrar esses fantasmas para viver a vida.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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