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Filósofo Pra Quê?

As certezas fáceis nos circundam. Patologia do projeto iluminista, a crença em demasia no poder de avaliação faz com que as pessoas subestimem sua incapacidade para pensar. Numa célebre frase de Martin Heidegger, esta verdade foi exposta de forma nua e crua: “O pensar somente começa quando tomamos conhecimento de que a razão, tão glorificada durante séculos, é a mais tenaz adversária do pensamento”. Desta postulação vinha sua crença de que “nós somos as entidades a ser analisadas.”

A arrogância dos que imaginam possuir respostas certeiras para todas as situações está relacionada à fragilidade interior, à incapacidade para cultivar a dúvida e ouvir outras opiniões quando necessário. Em nome de uma crítica ao “racionalismo filosófico”, perde-se a oportunidade de buscar apoio nas experiências e saberes dos que acumulam potencial intelectual. Talvez por isso, como um tiro que sai pela culatra, vemos hoje uma precariedade enorme na capacidade de pensar os planos complexos que a realidade nos indica.

A controvérsia, uma das derivações do trabalho do filósofo, vive a atormentar os que sabem de tudo. A história da filosofia está recheada de exemplos de pensadores que, em diferentes espectros ideológicos, ajudaram a reforçar o que Heidegger apontava como ironia: “Fazer-se inteligível é suicídio para a filosofia”. A inconveniência dos filósofos atormenta o “poder da ciência e dos métodos científicos”. Não que devamos negar o plano da vida prática e tornar nosso discurso sempre ininteligível. Heidegger apenas brincava com essa confiança elevada dos homens e mulheres em seu próprio poder de análise.

Paul Feyerabend, filósofo austríaco que ousou relativizar o poder do método científico, dizia que “os procedimentos mais estúpidos e os resultados mais risíveis são cercados por uma aura de excelência.” O progresso no conhecimento, dizia, depende da quebra de paradigmas e prescrições absolutas. Defendendo o “pluralismo teórico”, Feyerabend postulava que não existem coisas como fatos. As afirmações baseadas em fatos estão carregadas de teorias que dependem dos que nelas acreditam. Avançar é selecionar a melhor teoria, aquela que leva à melhor compreensão, conforme explica o biógrafo Jeremy Harwood.

No jogo do perder tempo em provar quem tem razão, desperdiçamos a solidariedade necessária na avaliação dos objetos. Confiamos cegamente em nossas próprias percepções e, em boa parte das ocasiões, o resultado final é um prejuízo coletivo. Construir perspectivas e projetos de forma comum implica abdicar dessa arrogância, fruto de uma razão instrumental que contaminou muitos que ainda acreditam que a solução está na cabeça e não no coração.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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