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Motivo para Jejuar

Entre 6 e 8 de junho de 1972, o regional SUL I da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em assembleia ordinária realizada na cidade de Brodósqui, interior de São Paulo, publicou o primeiro contundente documento dos bispos paulistas contra o arbítrio do regime militar, condenando a tortura e o aviltamento da democracia no Brasil. À frente desta empreitada estava Dom Paulo Evaristo Arns, um dos mais destemidos religiosos brasileiros, que conseguiu unir as forças do episcopado paulista, arregimentando inclusive bispos mais conservadores, que assinaram o documento.

O próprio Dom Paulo relata essa grande reação da igreja contra os direitos humanos no livro “Justiça e Paz: Memórias da Comissão de São Paulo, de autoria de Antonio Carlos Ribeiro Fester, publicado pela editora Loyola. Nesta obra Dom Paulo diz ter colocado em pauta na assembleia o problema das prisões arbitrárias, da tortura e do desaparecimento de pessoas presas. Alega que existiam testemunhos orais e a promessa de médicos de vários hospitais de que passariam as provas dos crimes.

Fazendo menção ao texto bíblico contido no capítulo quarto do evangelho de Mateus, em que João Batista reage à sua prisão arbitrada por Herodes, dizendo que não é lícito prender sem ordem judicial, torturar e matar, o documento sintetizava um sentimento de boa parte dos cristãos católicos e não católicos em defesa dos direitos civis e humanos.

Ignorado pela imprensa, a divulgação do documento foi feita por meio das próprias paróquias, que, em São Paulo, especialmente, distribuíam discretamente cópias no final das missas. Mais de 50 mil exemplares foram impressos. Há também a informação de que um padre capuchinho corajosamente o leu durante uma missa no clube militar, sob os protestos dos presentes.
Os bispos propuseram também um jejum específico contra o arbítrio e a ditadura. Entre os signatários do documento também estava Dom Gabriel Paulino Bueno Couto, primeiro bispo de Jundiaí.

Paradoxalmente, a maioria dos bispos brasileiros havia apoiado o golpe em 1964 e, paulatinamente a CNBB tomava novos rumos a partir dos anos 70, com a influência de nomes ligados ao pensamento libertador. A questão que ressurgia na igreja brasileira, retomando orientações que vinham do Concílio Vaticano II e das indicações da segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, que propunha o olhar compromissado da igreja com a transformação das injustiças sociais, a pobreza e a miséria. Contrariamente à ideia presente em muitas localidades, de que a experiência religiosa deveria ser vivida no âmbito do espaço eclesial, tão somente, a proposta daquele jejum tocava na ferida profunda das práticas espirituais desencarnadas, que o evangelho de João aponta: “Se alguém afirmar: “Eu amo a Deus”, mas odiar seu irmão é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.”

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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