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O Dia da Mentira

Traída, muitas vezes, a memória passa ao largo, quando muitos se rendem ao “modernismo saudosista” do conservadorismo, uma ignorância civil e ética. Prefiro não trafegar no difícil e pantanoso terreno das preferências político-partidárias. Minha reflexão se fundamenta na experiência daqueles que, acima de qualquer suspeita, fizeram de tudo para garantir a dignidade da pessoa humana em situações de violação dos direitos civis.

Se as mentes menos esclarecidas não sabem, temos o dever de informá-las, que do alto do padrão moral de um Paulo Evaristo Arns, de um Helder Pessoa Câmara, de um Pedro Casaldáliga, de um James Wright, fluem razões para acreditar que o período militar foi uma excrescência política. Os relatos publicados no maior documento público sobre as torturas praticadas durante o regime, a obra “Brasil Nunca Mais”, são provas vivas de que a insanidade, em muitos momentos da vida republicana, campeou com o poder, numa permuta inexplicável com os valores mais básicos da vida ética. A democracia, como joguete nas mãos de grupos inescrupulosos, esvaiu-se por entre os dedos de representantes de organismos do Estado, parcela da classe militar.

Uma das mais virulentas atitudes do regime, expostas na biografia de Dom Paulo Evaristo Arns publicada pelo Instituto Vladmir Herzog (O cardeal da resistência – as muitas vidas de Dom Paulo Evaristo Arns) foi um encontro seu, destemido, com o General Médice, títere de plantão nos idos dos anos 70, aplaudido com bandeirinhas em plena Avenida Jundiaí em certa ocasião. Num gesto de coragem, Dom Paulo lhe oferece um presente enviado por um católico paulista, prontamente recusado aos berros pelo elegante senhor.

Característica própria da maioria dos generais que ocuparam indevidamente o poder era a falta de cultura, especialmente a clássica e humanística. Chega a ser risível as alegações feitas contra “comunistas” e “subversivos” em muitos dos documentos anexados aos processos de prisão e tortura. A censura, muitas vezes se materializava como roteiro fatídico de cômicas apresentações teatrais, recheadas de ignorância.

Ao se completarem os 50 anos do golpe militar de 1964, haveria bem poucas lembranças factuais para repetir. Uma delas, digna de menção, talvez seja o fato da vergonha dos generais em assumir que o golpe foi no dia 1º. de Abril. A versão oficial determinou que fosse 31 de março. Afinal, havia uma dupla mentira se materializando. A primeira, bem ao modo da história oficialesca, a alteração constante das versões. Outra, a própria ditadura instalada, uma mentira que precisa ser, infelizmente, lembrada até hoje.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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