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O Gênero da Ideologia

A palavra gênero comporta muitos significados. Muito utilizada ultimamente, por razões ideológicas supostamente contra-ideológicas, tomo-a aqui como tipologia. E sirvo-me deste termo para indicar as várias concepções de ideologia existentes.

Foi um importante intelectual brasileiro, Michael Löwy, quem analisou detalhadamente o conceito de ideologia. Em sua obra “Ideologias e Ciência Social”, um livro que se tornou referência em várias áreas do conhecimento, inclusive na educação, indica suas origens históricas mais remotas, até chegar às conceituações provindas das Ciências Sociais clássicas e da filosofia.

O conceito foi inventado por Destutt de Tracy, um enciclopedista de terceira categoria, em 1801, quando da publicação de “Eleménts d`Ideologie”, concebendo a ideologia como um subcapitulo da Zoologia. Acusado por Napoleão Bonaparte de “ideólogo” (essas acusações parecem ser recorrentes na história), por sustentar uma concepção metafísica e especulativa sem relação com a realidade, o autor caiu no ostracismo.

Em 1846, Karl Marx publica sua obra “Ideologia alemã” e concebe ideologia como ilusão, falsa consciência, idealismo, vendo suas expressões em formas religiosas, filosóficas, morais, legais e políticas. A partir da interpretação das obras de Marx, seus seguidores passam a sustentar que ideologia é a retrato dos interesses de classe.

Com a definição de seu método interpretativo, o materialismo histórico-dialético, Marx entende que não há categorias fixas no campo das ideias e princípios, já que a vida humana, social, está em constante transformação. A realidade histórica, social e econômica é fruto da ação humana em processos recorrentes de transformação da realidade. Não existem nem ideologias nem utopias eternas, faz-se necessário sempre analisar contextos, a totalidade das possibilidades de interpretação, as relações entre as ideologias e a história.
Desta forma, não existe uma ideologia dominante, mas um permanente enfrentamento entre as ideologias e projetos utópicos, sendo crucial compreender a realidade para transformá-la. A chamada filosofia da práxis, nada mais é do que a verificação de que a prática social se constitui na relação entre ideias e ações. A emancipação humana, a libertação objetiva e subjetiva enseja a transformação das consciências e das ideologias.

Karl Mannheim, sociólogo húngaro influenciado tanto por Marx como por outros clássicos da Sociologia, posteriormente, compreende por ideologia um conjunto de ideias para legitimar e reproduzir a ordem estabelecida, com vistas a uma conservação social. As visões sociais de mundo nada mais são que ajustes de ideias e valores determinados pela posição de classe. As ideologias teriam como função legitimar, justificar, defender e manter a ordem social. As utopias, ao contrário, seriam críticas, subversões e apostas em uma nova realidade.

A partir destas indicações de Löwy, podemos perceber que ideologia pode tanto significar um conjunto de ideias de determinados grupos com a intenção de manter uma determinada situação (social, econômica, moral, legal) ou a tentativa de transformar e subverter uma lógica, inclusive de pensamento, que impede avanços de todas as naturezas.

Esses dois “gêneros” ideológicos podem encontrar ecos e apelos no transcurso dos processos históricos. Dependendo da adesão dos sujeitos individuais, por razões mais diversas, a um ou outro gênero, poderemos compreender o significado de suas defesas no campo das ideias e das ações. Aqueles que, movidos por expressões morais de conservação que impedem os avanços utópicos, as transformações e acolhimentos a novas formas de experiência social objetiva e subjetiva, certamente farão ouvidos moucos para o que não lhes agrada.
Certamente isso não significa que os demais, que aceitam e desejam que tais transformações ocorram se sujeitem a qualquer tipo de determinações, inclusive as que ilegalmente provêm de mecanismos legais. Como vivemos numa arena de lutas entre posições, as disputas por ideias e valores são naturais. No entanto, as fórmulas de enfrentamento é que precisam, no caso das resistências aos conservadorismos ideológicos, ser mais qualificadas.

Mas é István Mészáros quem melhor dá relevo às circunstâncias socio-históricas que possibilitaram o surgimento e o predomínio de uma dada ideologia e a visão de mundo à qual pertence. Demonstra que “a ideologia não é ilusão nem superstição de indivíduos mal orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada”, que “afeta tanto os que desejam negar sua existência quanto aqueles que reconhecem abertamente os interesses e os valores intrínsecos das várias ideologias”. Pretensões de autodeterminação ‘não-ideológica’ e de ‘neutralidade’ da ciência’, não se constituem como meras confusões. “Antes, é uma ilusão necessária, com suas raízes firmemente plantadas no solo social da produção de mercadorias e se reproduzindo constantemente sobre essa base”.

As ideologias, portanto, são sempre resultado de uma condição social que provém de uma base material. As identificações com o gênero dominante, que ocorrem por meio de expressões da cultura, das instituições, dos mecanismos educacionais, são tão prováveis quanto seus opostos. Não há predominância que se sustente neste processo de permanente conflito, fundamento da sociedade de classes. As ideologias são intenções de luta para manter ou para transformar esse modelo de sociedade. Se alguém ou algum grupo imagina sustentar suas posições fora deste escopo social, certamente estará completamente alienado sobre sua própria realidade. Os preconceitos, os fundamentalismos, as agressividades, são fruto da lógica competitiva que emana do capitalismo. Defender posições conservadoras nada mais é do que defender a lógica dominante, controladora, impedidora do avanço social, das liberdades individuais e coletivas.

Não devemos sucumbir aos avanços de um discurso ideológico pretensamente “não-ideologizante”. Muito menos resistir a ele por meio de formas de enfrentamento que o reforçam, sem desmistificá-lo como parte integrante de uma engrenagem contra a qual, esta sim, devemos esperançar utopicamente a superação. Há algo mais sério por trás das representações tão pobres de grupos e pessoas que engrossam as fileiras do conservadorismo. É sobre isso que devemos nos ocupar.

Imagem: site cancaonova.com

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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