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O traidor?

Um belíssimo filme me instigou a propor esta reflexão sobre a complexa análise das opções ideológicas e das práticas dos militantes políticos. Trata-se de “Trem noturno para Lisboa”, estralado pelo grande ator Jeremy Irons. Na trama, Irons faz o papel de um professor suíço, que salva uma jovem da tentativa de suicídio. Ele a socorre e a leva para sua sala de aula, mas não obtém êxito em mantê-la por perto. Ela foge, mas deixa um casaco em cujo bolso está um livro, escrito por um jovem médico português. O professor abandona a aula para procurar a moça e tomado por um arroubo de aventura, ao se deparar com o conteúdo do livro, apaixonante, dirige-se para Lisboa em busca de compreender o significado da obra. O jovem médico, de classe social abastada, filho de um juiz de direito, se envolve com militantes da resistência à ditadura salazarista no movimento que culminou na revolução dos cravos. Seu triste fim foi a morte por aneurisma cerebral, mas há momentos muito sensíveis que indicam que é possível viver sem ódio.

Aliás, muitos dos que dizem defender uma sociedade sem ódio, patrocinam animosidades, infelizmente, em nome de supostas causas “mais elevadas”. O jovem médico se apaixona por uma linda militante política, mas não consegue continuar nesta paixão, por desejo dela. Outro dilema da atuação social. Como conciliar sonhos de emancipação e paixão desenfreada? Para muitos seria uma rendição ao estado burguês de relações afetivas. Ainda hoje! Voltemos ao centro do interesse. A cena que mais me chamou a atenção é que me motivou a escrever estas linhas.

Um dos torturadores mais cruéis do regime – que inclusive torturou seu amigo – é salvo de um linchamento pelo jovem médico. A multidão enraivecida (que tinha motivos políticos para desejar a morte do sujeito), aos gritos, reivindica um veredito para o médico: você é um traidor! Ao que ele responde: sou um médico. A multidão insiste em chamá-lo de traidor e uma mulher lança-lhe uma cusparada na face. Eis a questão. Como conciliar atitude civilizada e humanista dentro de um regime político ditatorial? Como manter a coerência legal (não deixar alguém morrer ou deixar que seja morto) diante da ilegalidade de tantas mortes por tortura? Como manter a civilidade numa crise política e não se deixar mover pelo ódio acusando nos outros uma coerência que falta a quem acusa?

Penso que não há justificativas para voltar à lei do talião. E esta propositura, defendida de muitas maneiras ainda hoje por muitos, por meio de práticas como a difamação publica em nome de supostas “verdadeiras” boas opções políticas, nada tem que ver com seriedade pessoal, quanto menos política. Não é isso que se reivindica em favor de líderes da esquerda, que tem sido – no julgamento de boa parte dos militantes – injustiçados por perseguições? Que se pare de acusar por devaneios e que haja justiça? Então por qual razão perseguir? Ao contrário, críticas que tem como objetivo ferir a humanidade do outro que, mesmo esteja em posição oposta a nós, não se sustentam eticamente. Isso nada tem que ver com o direito de criticar. Mas há formas e formas. O que falta em muitos desses militantes políticos é a capacidade de avaliar contextos. Alguns dos que apontam os dedos, são os mesmos que tentam conseguir algum benefício ou privilégio em determinadas situações. E penso que conseguem, inclusive. O raciocínio tosco abre mão da própria ética que prega e, como reza a velha máxima evangélica, aponta o cisco no olho do outro.

Há muitos motivos para cansar diante destas bestialidades. Há muitos motivos para cansar de tentar apontar irracionalidades. Há muitos motivos diante de tanta irracionalidade, para desistir de tentar mostrar que nem tudo é o que parece ser. A desejada coerência que apontamos como falta nos outros é aquela que todo ser humano persegue durante toda a vida. O bem e sua busca, no dizer do velho Aristóteles. Aderir a fundamentalismos morais que aparentam se sustentar na coerência é uma farsa e uma hipocrisia. Este ódio político, patrocinado a vistas grossas quando se diz combatê-lo, demonstra a incapacidade para a crítica.

Há um longo caminho entre o bem que se deseja e a denúncia torpe e baixa. Pessoas de bem, como o jovem médico, são jogadas na vala comum dos “sem coerência”, quando o buraco, na verdade, é mais embaixo. No nosso país, atualmente, os motivos para a falência moral e institucional de grande parte dos agentes do Estado, são muito maiores do que a ação isolada de sujeitos de bem que, por força das circunstâncias, desejariam estar em outra posição em relação àquela em que se encontram. Talvez o jovem médico não desejasse querer salvar um torturador. Mas preferiu manter sua vida, porque buscava a coerência ética. Talvez as línguas afiadas de quem o condenou não tenham nenhuma relação efetiva com consciência política, já que esta sugere a civilidade e o respeito às leis justas.

Definitivamente não há nenhuma coerência ética no apontamento de juízos morais desfavoráveis, publicamente, às decisões que são tomadas por pessoas que desejam o bem. De modo contrário, ao chamar alguém de traidor e desejar a sua morte (mesmo que seja a morte política), já se esvaneceu em palavras ocas a própria base moral de quem condena. Fidelidades não são construídas apenas por meio de apelos ideológicos. Por vezes as supostas ideologias fazem muitos sujeitos serem fiéis a pares nada exemplares. Eu prefiro a consciência individual.

Resumindo, lutar contra situações políticas desfavoráveis não implica necessariamente promover a inquisição pública, porque se este for o caso, estaremos todos ardendo no fogo do inferno ou guilhotinados pelo desejo de alguém. Por fim, a moça salva pelo professor era, na verdade, neta do torturador. Encontrou por acaso um exemplar do livro do jovem médico em uma livraria na Suíça e, ao se deparar com o fato de seu avô ser um torturador, não viu mais razão para manter-se viva, pela contradição entre o amor daquele avô que era só dela e o torturador que banalizava a vida alheia. Ainda bem que há bons professores e médicos para salvar vidas e não para empurrá-las para a morte.

Crédito: Foto Divulgação

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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