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Sem Atalhos

Uma debandada de gênios nos últimos dias. João Ubaldo, Rubem Alves, Ariano, Ronaldo Mourão. Gente famosa que estava viva e, sem mais nem menos, se integrou ao cosmo. Talvez, alguns deles com muita coisa em comum. Ariano, vez ou outra, surpreendentemente, saía com uma tirada de arrepiar. Uma delas foi sua deixa sobre a morte: “a literatura é uma forma de protestar contra a morte.” Rubem Alves disse algo na mesma esteira: “não tenho medo da morte, tenho medo de morrer”.

Inescapável condição, que não permite atalhos, nossa finitude diz algo sobre nós mesmos. Tema recorrente não só na literatura, mas praticamente certo em todos os momentos da história do pensamento, a morte, se diz, é uma piada de Deus. Não porque o poderoso de nós queira caçoar, pelo contrário. Indica-nos ironicamente que o sentido está no fim, como dizem os literatos, os teólogos e muitos filósofos. O legado é a razão de tudo, justifica a morte. Eis a questão?

A primeira pergunta de todas deveria ser sempre: “qual será o meu legado?” Esses nossos brasileiros acima da média, que nos deixaram recentemente, podem ficar sossegados. A questão é se nós podemos. Não que devamos criar grandes coisas para fazer a diferença. O que realmente importa é o que nos move além da mesquinharia. Mais dia, menos dia, a gente vai dessa para outra. Como diz Ariano, saímos do estado sólido e passamos para o gasoso. E não haverá nenhuma compadecida para nos ajudar, a não ser o compadecimento em vida, que devemos cultivar pela própria existência. Fazer valer o que temos para cuidar.

Neste final de semana, com alguns poucos tostões, senti que a vida vale a pena ao adquirir três livros de autores incontestes. Jean Pierre-Vernant, o grande historiador da religião grega, Mircea Eliade, o filósofo e historiador das religiões e Ivan Gobry, filósofo e historiador francês. Uma bagatela que por vezes soa como aquela peninha deslizando no ar, ou aquela imagem congelada no filme preferido. Ali, naquele instante mínimo, aparece uma felicidade filosófica que instiga os sentidos e traz à razão um lampejo de alegria: isso aqui vale a pena aproveitar.

Cada um no seu quadrado, como dizem, mas esse esforço mínimo é que dá sentido à morte, que está sempre se avizinhando. Ao menos desde que nascemos, tudo indica. Fico com o Rubem Alves. Não devemos temer a morte, apenas morrer. Porque se pode morrer todos os dias, de todas as maneiras. Eticamente, socialmente, injustamente. Pelas ações malévolas de outros, a ganância do mercado, a inanição e a miséria. Na brilhante letra de Paul McCartney, está dito: “live and let die” (viva e deixe morrer).

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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