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Sobre Mães e Limpeza Moral

Hoje, 02 de dezembro de 2015, faz 15 anos que minha mãe se integrou ao cosmo. Uma das suas características marcantes, sobre a qual meu juízo de valor só pode ser positivo, era sua mania de limpeza. Um transtorno obsessivo compulsivo, diriam alguns. Segundo outros, essa prática pode se relacionar a problemas relativos à sexualidade, a pureza em demasia. Quem sabe? Não sei. Só sei que das muitas coisas que ficaram, a tal mania de limpeza me fez bens enormes.

Nas minhas meninices da infância, as brincadeiras eram todas na rua sem asfalto. Bolinhas de gude, pipas, bola, tudo ali, naquele ambiente visivelmente inóspito do ponto de vista da limpeza. As roupas ficavam sabe Deus lá como. Não me lembro de queixas de minha mãe sobre isso. A “loucura” de um mundo hermético com crianças sempre limpinhas não passava pela cabeça dela, mesmo que fosse “maníaca por limpeza”. Creio que a lição maior era outra, proveniente da sua sabedoria. Aquelas roupas limpas e impecáveis daquele menininho gordinho (sim, eu já fui gordinho) representavam outro desejo. Um desejo de uma limpeza moral.

Já é sabido que ninguém nasce anjo ou demônio, que nossa construção humana, cultural, envolve também a dimensão ética. Podemos aceitar de maneiras diferentes as diferentes situações do dia a dia, pela influência da família ou por outros meios. Paulo Freire, dizia que todo ser humano pode optar em ser ético como em transgredir a ética. Eu fico com a primeira opção, mesmo que me considere em busca da vida ética. Prefiro ficar com as minhas roupas limpas e perfumadas, como mamãe gostava que fosse, porque entrar na sujeira é só para brincar.

Existem situações com as quais não se brinca e a seriedade ética nos obriga a não fazer concessões. Para muita gente “o mundo é assim mesmo”. De fato, o mundo é assim mesmo. Mas podemos escolher. Eu escolho o que aprendi com minha mãe. Não se trata de rigorismo moral, mas de radicalidade ética como condição ontológica do ser humano. De vez em quando sujaremos a roupa limpa porque escorregamos e caímos. Mas o desejo de cair e sujá-la são outros quinhentos.

Admitir que o que é acidental se torne prática corrente é perder o juízo ético e a credibilidade. Por esta razão, bendigo à natureza pela mãe (e também pelo pai) que tive. Nas minhas mentiras sinceras, que me interessam, nunca estão as mentiras verdadeiras, que me prejudicam e a outrem. Pessoas públicas estão sujeitas a juízos múltiplos. Se íntegras, não se abalam com pejorações. Manter o legado é seu objetivo maior. No dia de hoje, rendo mais uma vez minhas homenagens e minha gratidão à minha mãe, Eva Spina Polli, por ajudar-me a me manter com as roupas limpas.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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