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Trilhos e trançados

Trilhos e trançados: percorrendo caminhos e tecendo os fios da luta operária dos trabalhadores ferroviários e têxteis em Jundiaí (1860-1960)

(Texto publicado originalmente na Revista Cidade, Patrimônio e Memória da Secretaria Municipal de Cultura de Jundiaí-DPH, a partir dos anais do 3º. Simpósio sobre o Patrimônio Material e Imaterial de Jundiaí, 2015)

Introdução

A flexibilização de direitos trabalhistas a partir dos anos 90 no Brasil, como consequência da modernização conservadora e neoliberal, fez emergir uma série de reflexões e preocupações críticas em torno dos efeitos sociais dessa tendência. Em tempos de financeirização da economia mundial, resgatar em momentos históricos anteriores experiências de êxito e fracasso de setores da economia, o contexto histórico que as motivou, ajuda a promover uma maior compreensão sobre o momento presente. Recolocar em debate as experiências outrora existentes, os caminhos percorridos em setores da economia não muito avaliados em âmbito regional e local. Como afirmam os historiadores, o passado ganha significado e compreensão a partir do olhar do presente e, o presente, ganha novos contornos a partir dessa compreensão, na medida em que suas demandas e questões são pensadas com o auxílio da história como ciência interpretativa.

Simone Weil , ao abordar a questão do desenraizamento operário, nos mostra o quanto os mecanismos de organização do trabalho e da produção podem levar o trabalhador a condições de privação, não só de direitos legais, mas de sua própria capacidade de controlar o seu destino.

Em muitos momentos da história do trabalho no Brasil, milhares de trabalhadores foram reduzidos a uma obediência forçada, sem possibilidades de participação ativa, através da capacidade criativa, da ação, dos sentimentos, nas realizações cotidianas à sua volta. Em alguns momentos, para alguns, a falta de domínio das forças físicas e dos “sentimentos impróprios como a indolência” deveriam ser moralizados e purificados. (A COMARCA, 1950)

Revisitar as experiências de trabalhadores que desmistifiquem essa visão moralizadora, higienizadora do social, avaliando de que maneiras os sujeitos a concebem e vivenciam, sobretudo considerando as várias dimensões da vida urbana, faz-se tarefa salutar para os historiadores econômicos e sociais. Em consonância com o que afirma Maria Célia Paoli, “fazer emergir sentidos de vida que não foram registrados, embarcando no fascínio que nos produz a força das lembranças e na vontade de ajudar a dizer aquilo que foi silenciado” (PAOLI, 1992)

A história do movimento operário em Jundiaí teve como ponto de partida, em sua forma organizada, as ações dos trabalhadores da antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Com a implantação da ferrovia Santos-Jundiaí, operários de várias nacionalidades se incorporavam ao quadro de funcionários da empresa, ocasionando tensões entre eles e os empresários. Um dos resultados objetivos foi a criação da Sociedade Humanitária dos Ferroviários, que tinha como objetivo a prestação de socorro mútuo e reivindicar melhores condições de trabalho e de vida.

Frutos desta organização surgiram os movimentos que levaram a uma greve dos ferroviários em 1906. Na outra ponta do movimento sindical, os trabalhadores têxteis fundaram, em 1915, a Associação Beneficente dos Operários da Tecelagem São Bento. As pressões vindas destes dois segmentos levaram o Deputado Eloy de Miranda Chaves a apresentar o projeto de lei de criação da Caixa de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários, aprovada em 24 de janeiro de 1923. As crises econômicas sucessivas que culminaram na quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929 e as revoluções de 1930 e 1932, proporcionam uma evolução da luta operária na cidade e o surgimento de novas organizações de trabalhadores de outras categorias, como metalúrgicos e alfaiates.

Em 1953 foi criado o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis de Jundiaí. A diretoria eleita foi impedida de tomar posse. Ao mesmo tempo ocorria uma greve que se juntou a um movimento estadual que englobou 300 mil trabalhadores.

Esta mobilização reforçou a organização operária, fazendo surgir novos sindicatos, como o dos ceramistas, dos gráficos, dos químicos. As reivindicações mais gerais surtiram efeito com a criação de leis que estabeleciam o pagamento do 13º. Salário, a Lei Orgânica da Previdência Social e a encampação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro pelo governo estadual.

Um interstício foi provocado com o golpe de 1964, iniciando um processo de perseguições, intervenções e prisões de líderes sindicais. Só a partir de 1978, com o início das movimentações de trabalhadores metalúrgicos no ABC paulista houve a retomada das lutas mais abrangentes e o fortalecimento do movimento intersindical em defesa da Previdência Pública Universal, contra o desemprego e a aceleração do processo de assentamento de trabalhadores rurais sem terra.

A greve geral da Companhia Paulista em 1906

Um manifesto da Liga Operária de Jundiahy distribuído em 15 de maio de 1906, esclarecia os motivos da organização de uma greve geral na Companhia Paulista. Repressões vindas do governo do estado, constrangimentos e violências contra os membros da liga fizeram que muitos destes se ocultassem. Mas o documento divulgado profusamente em São Paulo, Rio Claro, Jundiaí e Campinas esclarecia que boa parte dos motivos da greve se deviam a arbitrariedades cometidas por chefias. A remoção de um conferente chamado Thomaz Degani de suas funções, por parte do chefe da Estação de Jundiahy-Paulista, gerou um documento assinado por 400 trabalhadores enviado à Liga que o encaminhou para o Inspetor Geral da Companhia em 24 de abril de 1906, pedindo com respeito e cordialidade um melhor tratamento para os trabalhadores.

Uma ata da Assembleia extraordinária da Liga Operária, realizada em 5 de maio de 1906, na sala da Associação Humanitária Operária Jundiaiense, sede da liga, presidida por Manoel Pisani, relata os fatos e decide enviar o manifesto para o Inspetor Geral, Dr. Torres Neves, solicitando a revogação da pena imposta ao funcionário. Não houve resposta formal, mas boatos davam conta de que o Inspetor Geral orientara ao chefe de tráfego, Max Mundt, a remoção imediata do chefe da estação de Jundiahy responsável pelo ocorrido. A ação não teria logrado êxito devido a influências do chefe da locomoção, Francisco Paes Leme de Monlevade, que não queria dar o braço a torcer para a liga operária. Esta postura reforçou os atos arbitrários do chefe da estação.

Segundo os documentos da Liga, tanto Torres Neves, como Monlevade enxergavam nas solicitações indícios de manifestações anarquistas e, apesar de reconhecer a justeza da solicitação, se negaram a aceitá-la para abafar agitações operárias. A resposta de Torres Neves, constante em ata da Liga, teria sido:

“O que quereis voz, tomar o meu lugar? Os operários não têm direito nenhum de intervir na administração da companhia para a qual nós somos os únicos competentes. O dever dos operários é o de trabalhar nas oficinas e nada mais. As vossas 400 assinaturas não valem nada.”

Dados também revelam posições díspares dentro do movimento. De um lado, as lideranças tentavam amenizar o tom das críticas aos dirigentes da companhia e, de outro, trabalhadores indignados com as posições das chefias pressionavam por uma manifestação mais contundente da companhia. Ecos de uma greve surgiam no ar. Os principais dirigentes da Liga ponderavam sobre as forças do estado e da companhia, mas outros e a grande maioria dos trabalhadores presentes em assembleia, defendiam o que prevaleceu, o início da greve.

Uma assembleia realizada em 15 de maio de 1906 no Theatro São José, sela o compromisso de greve. Nela se manifestaram o advogado da causa, Dr. Arthur Guimarães e os líderes João A. Fortes, Manuel Pisani e João Correa. O tom do discurso é a unidade da classe trabalhadora, o orgulho em levantar a voz em defesa dos oprimidos, a luta entre capital e trabalho e o fato de o trabalhador não ser apenas máquina de produzir, mas “um ser inteligente e racional, que possui conhecimentos, que tem seus desejos e aspirações, necessidades a satisfazer, direitos a conquistar”, na voz do advogado.

Fica evidente o tom classista e o conclamamento à solidariedade e ao pacifismo do movimento, além do agradecimento aos trabalhadores de todas as nacionalidades que na ocasião trabalhavam na empresa, simbolizando a fraternidade entre os povos e ainda, a solidariedade à greve em curso dos trabalhadores da fábrica de tecidos São Bento.

No dia 16 de maio, nova assembleia realizada no Theatro São José, com centenas de trabalhadores e a presença do Tenente Adriano Augusto Pereira Leite, segundo delegado auxiliar de polícia do Estado de São Paulo e órgãos da imprensa da capital, os conselheiros da Liga Operária apresentam demissão e entregam os destinos do movimento aos trabalhadores, conclamando a não dar ouvidos aos órgãos da imprensa, já que os operários “tem consigo a voz da própria consciência que lhes garante a dignidade e santidade da causa que defendem, e por cujo triunfo estão propostos a ir até ao sacrifício”. Termos retirados do imaginário religioso definem a missão e a capacidade do operariado.

O movimento, segundo a ata da assembleia, recebe apoio de várias categorias, como barbeiros e chapeleiros de São Paulo, da Federação Operária de São Paulo, da União Operária do Rio de Janeiro, do comércio de Jundiaí e do povo de Campinas e Rio Claro. O representante policial diz não querer interferir no movimento desde que este esteja sob o controle da lei.

Os trabalhadores elencam uma lista de dezesseis razões para a existência da greve: 1. Demissões de funcionários para fazer economias ao mesmo tempo em que são gastos recursos para transferir a serraria para Rio Claro e as oficinas mecânicas desta cidade para Jundiaí; 2. Uso de recursos da empresa para construir os móveis e utensílios da casa do Dr. Monlevade, além de uso de mão de obra da empresa, bem como fornecimento de lenha e construção de fogões na casa do referido personagem e de outros dirigentes da empresa; 3. Execução de serviços particulares de obras de fundição no espaço da empresa; 4. Gastos com viagens aos Estados Unidos para avaliar o que já era de conhecimento dos trabalhadores, o emprego de técnicas e máquinas prejudiciais à saúde; 5. Esbanjamento de recursos com nomeações de diversas pessoas para as mesmas funções, protecionismos na nomeação de chefias e funções (especialmente para secretariar altas chefias como Dr. Monlevade e Dr. Torres Neves) e suposto favorecimento de “cocotes” dos altos chefes com passes para passear por toda a linha da companhia; 6. Abusos na nomeação de parentes dos dirigentes para funções na área de medicina e chefia de farmácias na Sociedade Beneficente, bem como desvio de materiais; 7. Negligência dos médicos da companhia na Sociedade Beneficente; 8. Nomeação de desenhistas inábeis pelo Dr. Monlevade; 9. Desvios e rebaixamento de funções; 10. Assédios morais, perseguições e antipatias do Dr. Monlevade com operários ligados à Liga; 11. Gastos além dos custos normais com compra de equipamentos no exterior; 12. Venda por preços inferiores dos equipamentos das oficinas de Porto Ferreira; 13. Favorecimento de aduladores do mestre geral Geraldo Storch; 14.Utilização de matérias primas da companhia na construção de alicerces e obras da casa do assistente do mestre geral, Thomaz Scott; 15. Utilização de aço e madeiramento para as obras da casa do assistente e outros mestres; 16. Favorecimento, com materiais da companhia, dos apaniguados dos mestres.

Esses motivos levaram os empregados das oficinas a solicitar a saída do Inspetor geral, o engenheiro chefe Dr. Torres Neves e do Chefe da Locomoção, Dr. Francisco Paes Leme de Monlevade, declarando estado de greve em 15 de maio e paralisando os serviços e a movimentação dos trens. Não houve resposta. Ficaram solidários ao Inspetor Geral o Mestre Geral das Oficinas Gustavo Storch, e Thomaz Scott, Contramestre. Com a deflagração do movimento, todos os demais funcionários como Engenheiros, Pagadores e Caixas foram para casa. O comércio, diante do movimento, passou a negociar apenas em dinheiro e logo faltavam gêneros alimentícios. Dr. Torres Neves pediu ajuda ao governo estadual, que enviou uma tropa de 50 praças e 20 soldados de cavalaria armados, alojados no âmbito das oficinas da companhia. Jornais anunciavam a presença de cerca de 250 homens das forças policiais na cidade. A greve tomou grandes proporções, atingindo a Companhia Mogyana, o Ramal Férreo Funilense, o Ramal das Cabras, a Companhia Mac-Hard, a Companhia Lidgerwood, a Companhia de Gás Campineira, cocheiros, carroceiros de demais trabalhadores. Toda região de Campinas, Vinhedo, Louveira, Itatiba, estava envolvida no movimento.

A organização dos grevistas tomou forma e uma reunião no largo da matriz, com cerca de 100 trabalhadores armados com cassetetes, garruchas, machados e foices foi o motivo para um conflito com duas praças de cavalaria que para lá se dirigiram. Um discurso inflamado levou a um disparo que matou um soldado. Seguiu-se um tiroteio que levou à morte de dois trabalhadores, Ernesto Gould, de origem inglesa e Manuel Dias. Estava instalado o pânico, a correria, a perseguição, a tentativa de se esconder. As ruas ficaram desertas. Dr. Monlevade, talvez desesperado com a situação, nomeou o trabalhador José Correa da Silva, da área administrativa, bem relacionado com os demais trabalhadores, como Inspetor Geral. A força policial e o episódio das mortes forçaram os trabalhadores a voltar ao trabalho. Algumas lideranças, no entanto, tentaram resistir, nada conseguindo. Estes tiveram posteriormente que sair da cidade. Há uma transcrição do inquérito policial registrado no Cartório do 1º. Ofício, alusivo ao evento ocorrido na praça da matriz no dia 29 de maio de 1906. Esta transcrição foi feita pelo memorialista Mário Mazzuia e detalha as minúcias do inquérito.

Este episódio histórico abre o processo de lutas sindicais dos trabalhadores ferroviários na cidade e de certa forma, dos trabalhadores em geral. Os ferroviários viriam enfrentar diversas outras situações em épocas posteriores, especialmente as que culminaram com o golpe de 1964. Várias lideranças sindicais da categoria foram presas pela polícia política, como Jaime Schenkel, nos anos 60. Ao lado dos trabalhadores têxteis, os ferroviários foram articuladores de todo o movimento sindical na cidade.

A expansão econômica e social brasileira e o crescimento de Jundiaí a partir dos anos 40

Entre o final dos anos 40 e início dos anos 60, houve um crescimento populacional no Brasil, da ordem de 35% e um aumento de cerca de 23% no contingente de trabalhadores operários industriais (de 1.325 mil para 1.610 mil, com 75% do total da mão de obra composta por homens e 25% por mulheres).

Segundo o relatório de gestão da Prefeitura Municipal de Jundiaí, produzido entre 1948 e 1951, a cidade possuía entre grandes e pequenas indústrias um total de 16 estabelecimentos, com uma população estimada em 70 mil habitantes, de acordo com a sinopse estatística do IBGE de 1948 e num processo de urbanização que se expressava na ampliação da rede de transportes, correios, logradouros públicos, serviço de água e esgoto, iluminação, bibliotecas, escolas, jornais, cinemas e teatros. (PMJ, 1948-51)
Várias indústrias têxteis já haviam se consolidado no município em décadas anteriores, como a Companhia Fiação e Tecidos São Bento, fundada em 1872, a Argos Industrial – antiga Sociedade Industrial Jundiaiense, fundada em 1913 e que na década de 50 já possuía cerca de dois mil trabalhadores.

Outras empresas, nas décadas posteriores, vieram a compor o parque industrial têxtil da cidade, como a Fábrica de Tecidos Japy, a São Jorge, a São Luiz, o Cotonifício Milani e Rappa, a Cia. Fiação e Tecelagem Jafé (do grupo Nami-Azém), a Tecelagem Santana, a Fides, a Cosmopolita, a Fábrica de Tecidos Guapeva, entre outras.

Segundo dados da Federação dos Trabalhadores das Indústrias de Fiação e Tecelagem do Estado de São Paulo, publicados em 1960, durante os anos 50 e início dos anos 60, o número de trabalhadores têxteis em Jundiaí oscilou entre 5600 e 6000 operários, o que ajuda a dimensionar a importância deste setor, pois os índices revelam corresponder a cerca de 5 ou 6% da população da cidade.

Com a política de nacionalização da economia, engendrada com a perspectiva de “expansão e modernização do capitalismo” nos anos 30 e que repercutiu até início dos anos 60, o Brasil teve um aumento considerável do mercado de produtos industriais, ampliado pela substituição de importações. A indústria têxtil, no entanto, teve uma diminuição de 46,4% para 23,1% na participação conjunta na produção nacional.

A trajetória de algumas empresas de Jundiaí revela uma inadequação frente às novas realidades econômicas, tecnológicas e financeiras que permearam esse processo. Foi o caso da pioneira, Companhia de Fiação e Tecelagem São Bento, falida em 1972 devido a um projeto mal sucedido de importação de máquinas automáticas proposto em 1967, com financiamento de alto custo e demora na implantação. Durante os anos 40, a empresa inseriu-se no chamado “esforço de guerra”, dizendo-se fiel cumpridora de suas obrigações fiscais e mantendo os preços de seus produtos. Até 1958 investiu na modernização do maquinário, ganhou o mercado internacional para elevar a produtividade e inserir-se no processo competitivo, tentando fazer frente aos concorrentes.

Outra empresa, a Argos Industrial, teve um crescimento produtivo da ordem de 4,3 a 7 milhões de metros de tecidos entre 1945 e 1965, diminuindo o número de funcionários e aumentando a produção em até 50%. Nos anos 50, os antigos proprietários escolheram alguns funcionários para administrar a empresa, o que fez aumentar a racionalização da produção e favorecer a ampliação do mercado. Esses dados foram publicados no Álbum Histórico e documentário “100 anos de Jundiaí”, da prefeitura da cidade, em 1965. (PMJ, 1965).

Os processos de racionalização do trabalho elaborados para enfrentar crises econômicas e produtivas, já se constituíam como respostas do empresariado desde os primórdios do século XX. Maria Antonieta Antonacci analisa essa questão em sua tese de doutorado, quando aborda a atuação do IDORT (Instituto de Organização Racional do Trabalho), criado em 1931. Em sua obra, cita Aldo Mário de Azevedo, da direção da fábrica de tecidos Japy, de Jundiaí, como um dos ideólogos da implantação de modelos tayloristas no meio industrial paulista.

Dentro das perspectivas políticas e do “ímpeto modernizador” que vai se caracterizando apenas pelos aspectos econômicos do país, são desconsideradas as expectativas, sentimentos e experiências daqueles que vivenciaram como trabalhadores a dinâmica que vinha sendo imaginada pelas elites empresariais. Uma modernização e um progresso que como nos lembra Maria Célia Paoli, “vai sendo perseguido como uma obsessão, que desvia o olhar da realidade e absolutizando os motivos do capital” (PAOLI, 1992).

Lutas sindicais, mobilizações de trabalhadores a partir dos anos 40 e o contexto político partidário em Jundiaí

As lutas e resistências operárias engendradas neste percurso da expansão têxtil relevam muitas vezes uma distância entre as dificuldades dos trabalhadores e as perspectivas das lideranças empresariais e sindicais. Hélio da Costa, em seu livro “Comissão de fábrica, partido e sindicato no pós-guerra”, faz uma análise da situação dos trabalhadores e do movimento sindical na transição dos anos 40 para os anos 50, voltando-se para a dimensão das lutas mais gerais engendradas neste período e a conjuntura política em questão.

Indica que diferentes perspectivas do que se convencionou chamar de “redemocratização” e democracia após 1945 se confrontavam. A das elites pregava a conciliação de interesses. A dos trabalhadores via uma luta entre grupos e classes se consolidando.Dentro desse processo, várias formas de interpretar o que significavam as lutas dos trabalhadores foram construídas, desde aquelas que levaram a uma onda de greves e formas de resistência ao paternalismo do Estado sobre o movimento sindical, até propostas de alinhamento ao governo do General Eurico Gaspar Dutra.

Com a criação do MUT (Movimento Unificado de Trabalhadores) em 1945, e sua perspectiva de conciliação de classe, apoio ao Estado e soluções pacíficas para os conflitos entre grupos, inclusive com apoio de membros do Partido Comunista, surgia uma tentativa de uniformização das práticas para desaconselhar greves e manifestações.

A rígida legislação dos anos 40, no entanto, não conseguiu impedir as lutas organizadas, especialmente as promovidas por ativistas comunistas não presentes nos quadros dirigentes. Na área industrial têxtil os empresários pressionavam para a anulação de direitos trabalhistas. As organizações fabris de trabalhadores, autonomamente, construíam formas de luta e politização, distanciando-se das lideranças sindicais. Várias greves ocorrem a partir de 1945 e a radicalização repressiva do governo Dutra fez aumentar o número de comissões de fábricas autônomas no seio da categoria têxtil. O PCB, antes numa postura dúbia, passava a aceitar que as mobilizações eram justas e se ajustou, numa tentativa de sobrevivência, às novas condições interpostas pela história. A experiência social mais ampla dos trabalhadores, como a que sempre pretendeu promover a historiografia econômica e social inglesa, ficou relegada ao segundo plano, já que a prevalência da militância sindical se fazia concretizar, em detrimento do cotidiano dos trabalhadores.

O PCB pensava a classe trabalhadora como algo mobilizável politicamente e não como classe operária. Fez vistas grossas à CLT de 1943, com clara perspectiva de exclusão de direitos. A ideia era tomar gradativamente espaços no aparelho sindical e “não botar nada a perder”. A distância do operariado era enorme.

As correlações e múltiplas imbricações entre classes e grupos, davam contornos à noção de Estado, ao perfil do patronato e à opinião pública. Na década de 50, o recrudescimento na flexibilização de direitos forçou a greve dos 300 mil, no ano de 1953, que durante 27 dias, marcou a conquista do direito social de greve.

A reação dos empresários veio sob várias formas, uma delas através do movimento internacional denominado “Rearmamento moral”, com intuito moralizador, pregando a cooperação, a ordem na produção, o “amor ao próximo”, tentando individualizar conflitos e descaracterizar as lutas operárias.

Para prejudicar a imagem das lutas operárias, entrava em cena uma intensa propaganda anticomunista, o espírito modernizador, a moralização católica, a pressão da imprensa.

Apesar do silêncio da imprensa jundiaiense, vários documentos e depoimentos dão conta de recuperar as mobilizações ocorridas na cidade. Segundo o ex-dirigente sindical Antonio Galdino , entre 1953 e 1964, a mentalidade imperante no sindicalismo têxtil era antiassistencialista. Antes disso, os editais do Sindicato dos Têxteis e comunicados publicados na imprensa entre 1945 e 1955, revelavam preocupações internalistas, como imposto sindical, eleições de diretoria, relatórios de gestão, etc. A visão assistencial tomava conta das instituições existentes em Jundiaí, não apenas os sindicatos, mas órgãos de imprensa, movimentos religiosos e associações de trabalhadores. Os próprios trabalhadores, incorporando essa visão, a manifestavam publicamente:

“Os operários da Cia. Fiação e Tecelagem Fides, desta cidade, tendo recebido um abono de natal, da firma em que trabalham, recolheram entre si uma importância que pretendem destinar a algumas instituições da cidade, para proporcionar aos mais necessitados um melhor natal. Queremos apresentar os melhores agradecimentos à direção da Cia. Fiação e Tecelagem Fides, pelo generoso gesto, que vem demonstrar o verdadeiro reconhecimento aos operários.” (A COMARCA, 14.12.1946)

Ao mesmo tempo em que viam no gesto dos empregadores uma atitude generosa, queriam retribuir da mesma forma. A condição passiva de recebedores de favores reforçava o assistencialismo, não vislumbrando outras possibilidades nas relações de trabalho. Órgãos como a Associação Humanitária Operária Jundiaiense, atuavam na cidade fornecendo auxílio funeral e doença. Em 1951, congregava cerca de 900 sócios. (A COMARCA, 18.02.1951) O Círculo Operário Católico Jundiaiense também prestava serviços de assistência médica e ambulatorial, promovia reuniões festivas, organizava bibliotecas, escolas e centros de puericultura.

As empresas também procuravam estimular a criação de associações internas de trabalhadores, contornando-lhes o perfil para direcioná-las às perspectivas assistencialistas. Através da influência sobre essas organizações, empresas com a São Bento e a Argos industrial, infiltravam, através de jornais internos, ideais do movimento de “Rearmamento Moral” junto aos trabalhadores. Esses jornais apelavam para o discurso da doutrina social da igreja expressa na encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII. (A GAZETA ARGOS, 09/1953) Além disso, algumas empresas promoviam doações para a construção de bairros, escolas e instituições assistenciais. (A COMARCA, 23.07.1949)

A organização dos trabalhadores sofria com a propaganda anticomunista na imprensa local, motivo pelo qual, a atuação dos sindicatos parece ter sido predominantemente a da manutenção de uma “harmonia” nas relações de trabalho até por volta de 1953. Entre janeiro e outubro de 1947, o Jornal “A Comarca” publicou uma série de artigos, assinados por diversos autores, coincidindo com a cassação do registro do PCB. O mesmo foi feito no Jornal “A Folha”, do Círculo Operário, entre 1951 e 1963 e no Jornal “Diário de Jundiaí” no ano de 1961.

Vários órgãos governamentais, como o Ministério do Trabalho, o IAPI (Instituto de Aposentadoria e previdência dos Industriários) e o SAMDU (Serviço de Assistência Médica Domiciliar de urgência da Previdência Social), caracterizavam o assistencialismo do Estado. O IAPI possuía programas de financiamento imobiliário e de assistência maternidade através do SAMDU. Sorteava interessados em adquirir financiamentos para a construção da casa própria.

Os governantes afirmavam desejar a conciliação nas relações com o empresariado e os trabalhadores, para continuar a obra getulista “para a felicidade do operariado e maior progresso da indústria nacional.” (A COMARCA, 21.10.45) Afirmavam que sua prática “seria cerrar fileiras afim de que a ordem pudesse imperar e a liberdade garantir direitos de todos os cidadãos.” (A COMARCA, 03.02.46) Na prática, a repressão às lutas sociais desmontava esse discurso.

Várias agremiações partidárias como a UDN e o PSP reforçavam o caráter conciliatório das relações entre trabalhadores e empregadores, inviabilizando espaços para outras correntes. O PSB já havia conseguido, no final dos anos 40, eleger 3 vereadores e outras legendas menores compunham o quadro. As relações entre instâncias sindicais e poder público eram costuradas por uma postura colaboracionista.

Em 02 de maio de 1946, o sindicato dos têxteis de Jundiaí publica uma carta na imprensa endereçada ao prefeito, da UDN, solicitando sua colaboração na alteração do horário da entrega de pães, alegando que o horário determinado estaria prejudicando o descanso dos operários, que trabalhavam das 22 horas até às 5h. Afirmava que diante da escassez mundial de trigo a necessidade de intensificar a produção era evidente, principalmente a industrial e, sendo perturbados em seu descanso os operários não poderiam colaborar adequadamente. (A COMARCA, 02.05.46) As forças deveriam estar unidas em função dos “interesses do país”, mas nada se dizia sobre os abusos cometidos contra os direitos dos trabalhadores. As posições políticas eram dúbias, como a expressa pela UDN:

“Tivemos a greve da Argos, felizmente levada a bom termo. É essa fábrica a que melhor paga em Jundiaí. No entanto, os proventos dos operários nunca ultrapassam o primeiro milhar de cruzeiros. Quer dizer, um chefe de família numerosa, para fazer frente às necessidades econômicas tem de pôr a mulher e os filhos no emprego, mal esses completam 14 anos.”(A COMARCA, 24.06.48)

Colocando as questões do operariado no campo moral, o partido sutilmente poupava a empresa, que conforme anunciava a imprensa no mesmo período, não cumpria cláusulas trabalhistas referentes aos salários dos trabalhadores, o que motivou a formação de uma comissão de vereadores para entrar em entendimentos conciliatórios com os empregadores, no sentido de garantir o aumento salarial dentro de suas possibilidades. Boletins criticavam a ação do sindicato, por supostamente deixar de cuidar dos interesses dos têxteis.

Neste campo de forças, embates, contradições, as lutas mais gerais se construíam. As forças mais mobilizadoras no campo sindical só lograram êxito a partir do início da década de 50. Um documento chamado “Organização sindical dos trabalhadores da indústria de fiação e tecelagem do estado de São Paulo”, publicado pela Federação dos Têxteis, em 1961, confirma essa realidade. Havia 30 sindicatos em 29 municípios do estado, compondo com o sindicato dos mestres e contramestres, uma organização que se estendia a mais 21 municípios, atingindo, portanto, 50 no total. Benedito de Camargo, do sindicato de Jundiaí, compunha em 1955 a diretoria da federação. Dividida em 8 regiões (São Paulo, Paulista, Vale do Paraíba, Sorocabana, Vale Médio do Tietê, Mantiqueira, Mogiana e Vale do Mogi Guaçu) a federação atingia 90% da categoria nas regiões próximas à capital.

Calculava-se em cerca de 195 mil o número de operários no setor em 1955, cifra que teria caído para 183 mil em 1960. Jundiaí, pertencente à região da Paulista, teria cerca de 5100 operários em 1955 e 5600 em 1960. No geral, entre 1955 e 1960 a categoria teve uma redução de cerca de 9,47% no seu volume de trabalhadores.

A principal matéria prima utilizada na região Paulista era a do algodão e a mão de obra constituída em sua maioria por mulheres (73% de mulheres contra 27% de homens), com alta concentração de menores na produção (26,6% na região).

Os sindicatos vivam do imposto sindical e das mensalidades dos associados. As sedes pertenciam à federação, mas em Jundiaí havia sede própria. A diretoria era afastada do trabalho, dedicando-se efetivamente à mobilização, ajudados por uma média de 3 funcionários por sindicato. Essa atuação ajudou a eleger uma bancada têxtil em todo o estado de São Paulo. Em Jundiaí houve a eleição de Antonio Galdino, pelo PSB. Cerca de 50% da categoria era sindicalizada, mas nem todos participavam das mobilizações. A média mais alta de participação nas assembleias chegava a 100 pessoas. A Federação, preocupada, procurou através de questionários, analisar os motivos desse distanciamento. Os resultados ficaram mais na organização propriamente dita da luta, sem nenhuma referência ao pensar e sentir dos trabalhadores sobre a luta sindical. As empresas não cumpriam acordos e reforçavam práticas de represália ao interesse dos trabalhadores em se mobilizar.

Havia também uma dificuldade relativa às lutas internas pelo poder de controle do aparelho sindical. Por um lado, grupos de várias vertentes políticas que se aglutinavam em favor das mobilizações e outros, cindindo-se em várias chapas, formadas basicamente por católicos avessos à luta sindical, que utilizavam do discurso anticomunista para generalizar a luta do grupo que dirigia o sindicato, formado por pessoas de diversos espectros ideológicos. Os comunistas do PCB, atrelados ao poder no estado, se faziam presentes na vida sindical local e eram combatidos tanto pela imprensa como pela justiça do trabalho. A igreja, por sua vez, buscava soluções baseadas no discurso espiritualista da caridade. O Jornal “A Folha”, do Círculo Operário Católico Jundiaiense, publicava peças assinadas pelo padre Adalberto de Paula Nunes. Numa delas dizia:

“Existem os sindicatos. Muitos deploram que o comunismo tinha penetrado em tais organizações de classe, manobrando-as para o seu interesse político ideológico. Por que, então os bons não fazem o mesmo? Tendo o mesmo espírito combativo que seus adversários, sacrificando-se pelo bem da sociedade e concorrendo às eleições da diretoria?”(A FOLHA, 06.06.56)

Neste discurso, ignora-se que o apelo da igreja também é político ideológico e mistifica-se a luta social numa visão maniqueísta que separa bons e maus, apelando para conceitos do imaginário religioso como a ideia de sacrifício, contraria à ideia de compromisso social. O “Centro Católico São José”, instituição fundada por católicos jundiaienses, dizia “combater no terreno religioso, social, todos os erros e tendências subversivas e congregar homens de várias classes que labutam durante o dia, num ambiente harmonioso e digno de nota”. (A FOLHA, 14.08.62) As diferenças se acentuavam na medida de publicações constantes de panfletos, pelos dois grupos em disputa.

No entanto, a luta sindical ganhou força com a ação de membros do Partido Comunista e conquistou as ruas. Vitório Pessoto, em entrevista concedida a um jornal local em 1986, militante sindical e trabalhador da Argos industrial entre 1940 e 1974, referindo-se à conquista do sindicato pelo grupo mais mobilizador em 1953, fala da intervenção branca da Federação, com mandado de segurança que institui uma junta governativa provisória, impedindo a posse do presidente eleito, Benedito de Camargo. Com recursos jurídicos, a posse foi garantida. Indica, em sua fala, que grande parte dos trabalhadores demonstravam sentimentos de desconfiança quanto à luta sindical. (JORNAL DA CIDADE, 06.05.86)

Enquanto a junta governativa administrava o sindicato, os militantes autônomos organizaram uma grande greve na cidade, que atingiu cerca de 5 mil trabalhadores, registrada pelo jornal “Notícias Hoje” do PCB, mas ignorada pela imprensa local. Houve repressão policial, aviões contratados pelas empresas distribuindo panfletos sobre a cidade, conclamando os trabalhadores para o retorno ao trabalho. Neste movimento, destacou-se autonomamente o trabalhador Onofre Canhedo. Diante do quadro, não houve como o interventor sindical, Antonio Lopes, não negociar um repasse de 10% sobre os salários, além de um abono salarial. Agentes policiais agiam nas ruas tentando dispersar os grevistas, violências simbólicas e físicas, no entanto, não foram suficientes para diminuir a intensidade do movimento. O Jornal “A Gazeta” publicou os resultados das negociações entre dirigentes das empresas representados pela FIESP local e o sindicato. Esta mobilização abriu caminho para outras que vieram posteriormente. Algumas leis começavam a ser aprovadas, como a do 13º. Salário e a Lei Orgânica da Previdência Social.

Em 1954, com o suicídio de Getúlio Vargas, e por decorrência do alto custo de vida, outra mobilização eclodiu em 02 de setembro, engrossando a greve geral contra o custo de vida, a famosa greve da “panela vazia”. As reações viriam através do empenho de dirigentes empresariais locais ligados à Frente Nacional do Trabalho. Uma delas foi a prisão de Antonio Galdino, dirigente sindical. Os trabalhadores da Argos paralisaram as atividades ao saber da prisão do líder, que posteriormente foi solto em São Paulo, sem recursos para voltar para Jundiaí. Ajudado por moradores no percurso da rodovia, chegou a Jundiaí por volta de 9h da manhã do dia posterior à sua prisão.

Houve também uma mobilização na fábrica de tecidos Azém, no ano de 1959, provocada pelo não cumprimento de uma decisão judicial pelos empregadores, que estipulava um reajuste de 18% para a categoria. Uma cláusula previa a argumentação da insuficiência financeira, que foi alegada pela empresa. Uma passeata arregimentou cerca de 400 trabalhadores, provocando uma abertura de negociações, quando a justiça julgou pela invalidade da argumentação da empresa. Várias outras mobilizações ocorreram até 1964, algumas na empresa de Tecidos Japy, em 1962, outras em conjunto, contra ameaças e mudanças constitucionais referentes aos direitos sociais. Outras ainda, por criação em âmbito local, de mecanismos de debate público, como a proposta de criação de um Conselho Municipal Sindical.
Benedito de Camargo foi preso após o golpe de 1964, cassado, torturado e respondeu a processo criminal, conseguindo provar sua lisura.

A condição operária têxtil em Jundiaí na década de 50

Como vimos, na fase anterior à década de 1950, a atuação sindical ia sendo moldada numa perspectiva de harmonia e conciliação de interesses. Os governantes queriam a continuidade da obra getulista “para a felicidade do operariado e maior progresso da indústria nacional” e que sua prática “seria cerrar fileiras afim de que a ordem pudesse imperar e a liberdade garantir direitos de todos os cidadãos.” (A COMARCA, 21.10.45)

Os empresários, por sua vez, esforçavam-se em propagandear a ideia da necessidade da conciliação das ações dentro da legalidade. A Federação das indústrias de fiação e tecelagem do estado de São Paulo, falando sobre a justiça do trabalho e a legalidade, defende “conciliar livre iniciativa com valorização do trabalho humano, num momento em que devido à escassez de divisas, o Brasil deveria inserir-se num esforço industrial e numa fecunda marcha pela industrialização.” (A COMARCA, 14 e 21.07.49) Imaginando que o progresso industrial em curso naquele período pudesse, através de um esforço conjunto, beneficiar tanto trabalhadores quanto empregadores, os empresários superdimensionavam o crescimento da indústria para justificar acordos de seu interesse, ignorando crises que viriam nas décadas seguintes.

Em 1952, o jornal “A Comarca” noticia que dados do departamento de comércio exterior dos Estados Unidos demonstravam que o segundo maior item de exportações daquele país para o Brasil era o de máquinas industriais, com total de 11,2 bilhões de dólares. A federação das indústrias dizia da necessidade de modernizar o maquinário do parque manufatureiro, sendo dos mais importantes benefícios resultantes da modernização do equipamento fabril. Dentro desta categoria, eram notórias as elevadas taxas de exportação de máquinas têxteis. Ao mesmo tempo, no Brasil, a redução de mão de obra atingia o patamar de 58% em determinadas empresas. (A COMARCA, 12.06.52)

Na verdade, o processo de industrialização e de “modernismo econômico” gerava uma elevação do custo de vida, conforme os próprios jornais da época confirmavam. As condições de vida dos trabalhadores agravavam-se na medida da precarização do trabalho.Além das mobilizações por direitos, as dimensões relativas à própria organização do trabalho, a vida nos bairros, a escolaridade, o lazer, a família, não apareciam nas preocupações mais amplas da luta sindical. Os próprios líderes sindicais reconhecem que muitos trabalhadores não se reconheciam como parte integrante das lutas e mobilizações. Talvez a engrenagem da produção e a luta pela sobrevivência não proporcionasse a reflexão sobre o processo produtivo, as relações interpessoais no ambiente das fábricas, as relações com os objetos e maquinários e a própria dinâmica da vida pessoal, num contexto urbano em construção.

Um dado importante é que na região da Paulista, a cidade de Jundiaí contava com a maior média salarial entre cinco grandes cidades, embora fosse uma das médias mais baixas do estado. A categoria era formada por quase 80% de mão de obra feminina, sendo que de um total de 5600 trabalhadores, no final dos anos 50, 40% eram menores. Através desses dados, pode-se imaginar o peso que a mulher trabalhadora, menor de idade, possuía na composição da renda familiar.

A maioria delas iniciava como aprendiz em diversas empresas, como a Milani Cortinas (São Luiz) e posteriormente migravam para outras que ofereciam melhores salários e novas funções. A passagem para a situação de ajudante de espuladeira (máquina produtora de fios que seriam utilizados posteriormente na tecelagem) significava um salto salarial, para que, como numa espécie de arrimo de família, ajudassem a garantir a sobrevivência de todos os demais irmãos e irmãs. Muitas vezes, seus salários eram maiores que os dos pais e irmãos mais velhos. Em alguns casos, os pais impediam as filhas de se casarem cedo, para não perderem parte da renda familiar.

O trabalho cansativo em máquinas automáticas não garantia a quebra da produção de fios nas espuladeiras. Os equipamentos paravam automaticamente quando os fios quebravam. Era comum os proprietários visitarem as dependências da empresa, o que significava que tudo deveria estar em ordem e organizado, aumentando a tensão dos empregados. Os bônus e brindes de natal, as festas nas dependências da empresa, a oferta de cortes de tecido para confeccionar roupas próprias, eram artimanhas utilizadas pelos empregadores para convencer as trabalhadoras de sua importância, proporcionando-lhes o sentimento de agrado. Corroborando para o que indicamos na percepção de Simone Weil, no início deste texto, o destino pessoal escapava por entre os dedos, em condições de opção muito restritas. Estudar era praticamente uma impossibilidade. No máximo, frequentava-se até o quarto ano do ensino primário, nas duas principais e praticamente únicas escolas da cidade.

O que pode ser dito da angústia e da solidão nas horas de trabalho noturnas? Como administrar as intempestividades do ambiente familiar numa condição de adolescência em atividade laboral? O que pensar da falta de recursos, do horizonte matrimonial como solução possível para sair da condição de pressão familiar?

Os 23 ou 33 cruzeiros pagos por hora de trabalho compensavam o sofrimento? A contribuição sindical significava exatamente o que para essas meninas trabalhadoras? Como fugir do facilitamento da fuga das greves, quando os patrões favoreciam o transporte? Como reagir à insalubridade? Aos ambientes úmidos, frios, quentes, das batedeiras de fiação de algodão que desprendem poeira, do chuveirinho das espuladeiras (borrifadores de água sobre os fios e corpos quentes das tecelãs)? Aos problemas de saúde ignorados pelos médicos ambulatoriais das fábricas e registrados em vários estudos sobre a produção têxtil no Brasil? Ao barulho ensurdecedor que provocava a necessidade da mímica? Ao controle das chefias masculinas dos mestres e contramestres, à vigilância e o autoritarismo? Ao discurso moralista que reservava à mulher o papel de “rainha do lar” e submissa aos interesses masculinos?

Desde os anos 40 já se instalavam no ambiente fabril mecanismos de controle (pontualidade, assiduidade, ordem, produtividade, eficiência) através de quadros comparativos que supostamente demonstravam um aumento de salários em contraposição à diminuição de horas trabalhadas. Os empregadores justificavam o controle diante dos mecanismos de resistência empregados pelos trabalhadores, como a cera, o fumo de cigarro de palha, as constantes necessidades fisiológicas, a simulação de reparos em máquinas e ferramentas e as conversas no ambiente de trabalho. (A COMARCA, 26.06.55)

Empresas de assessoria vendiam a necessidade de baratear custos e maximizar rendimentos e a racionalização era apontada como forma de eficiência funcional. No entanto, no olhar destes, não havia espaço para vislumbrar a longevidade das jornadas de trabalho, os baixos salários recebidos pelas meninas trabalhadoras, cerca de metade do salário do adulto, além da longa fase de cerca de três anos de aprendizagem das funções. Muitas compunham o salário por produção, sem controle das horas trabalhadas, além de complementarem sua renda familiar com outros afazeres no âmbito da família, como o trabalho de empalhar e vender cadeiras.

A propalada automatização consistia num aumento do número de máquinas utilizadas, ultrapassadas e inadequadas ao trabalho, que forçavam a redução do número de trabalhadores para diminuir o custo da produção. A eficiência produtiva não favorecia a produtividade. O tempo dos trabalhadores não comportava nenhuma outra possibilidade de convívio social.

No entanto, o envolvimento das trabalhadoras nas lutas sindicais, contribuía para o redimensionamento do olhar sobre o seu lugar na sociedade. O espaço da fábrica proporcionava a construção de novas práticas e concepções relativas ao trabalho e novas maneiras de interpretar as lutas mais amplas. As resistências e conformismos se avizinham no fazer-se da experiência de trabalho. Os relacionamentos contribuíam para consolidar histórias futuras e duradouras de vida a dois, a constituição de famílias.

O lazer, o footing na praça central da cidade, o cotidiano da vida nas vilas operárias, o congraçamento e a consolidação de hábitos, a diversão, estavam restritos ao tempo que sobrava. O próprio sindicato passou a prover festas, concursos, bailes, atrelados ao trabalho da luta sindical, para estreitar laços entre as pessoas. As vilas operárias foram sendo oficializadas no entorno das empresas como a Argos e a São Jorge. Nos jornais locais há registros de decretos de regulamentação de outras, por iniciativa das empresas, juntamente com o poder público, como é o caso da Vila São Bento, da Vila Japy, da Vila Guapeva. (A COMARCA, 22.03.51) A ação da criação de vilas operárias era vista pela imprensa como solução para o problema habitacional da cidade. No entanto, a prática se inscrevia ainda nos resquícios da ideia de harmonia de interesses entre patrões e empregados, que “aprisionavam” seus operários no entorno das fábricas para controlar seus hábitos.

Da expansão ao fracasso

Com a expansão da industrialização entre os anos de 1955 e 1959 em um cenário de dependência econômica externa e com a presença cada vez maior do Estado na economia, asseguraram-se a reprodução das relações de trabalho e a monopolização do capital. As classes empresariais se empenhavam em conquistar o acesso direto ao Estado, mas sem conquistar uma hegemonia.

As alianças do Estado com setores da direita e da esquerda, flexibilizaram sua ação em função de diferentes demandas. As lideranças sindicais reproduziam esse espírito conciliatório em suas organizações, agregando no mesmo campo de lutas janistas, adhemaristas, getulistas, cristãos e comunistas. Os governantes, até 1964, acabaram cedendo às pressões do movimento sindical, quando da aprovação da Lei Orgânica da Previdência.

Essa conjuntura, marcada pela concentração de poderes nas mãos do Estado, não limitou a ação reativa do movimento sindical. Em 1957, a greve de 400 mil trabalhadores, costurada por setores populistas e por comunistas, teve o apoio amplo dos trabalhadores. O discurso da flexibilidade proporcionou novas relações políticas e concepções de luta sindical. O ideário do nacionalismo econômico e a estatização da economia tornaram-se palavras de ordem e defendido por “democratas” e por comunistas.

No âmbito da cidade de Jundiaí, a alta do custo de vida, em fins dos anos 50, fazia com que a alimentação representasse 54% do orçamento das famílias, seguida dos custos de habitação (21%), vestuário (13%) e outros aspectos com índices menores. As condições de vida se deterioravam e o cenário político acenava para um recrudescimento do conservadorismo. O empresariado insistia no discurso das boas relações entre capital e trabalho, negando as históricas mobilizações outrora ocorridas.

O clima de confronto entre grupos se acirrava. Com o golpe de 1964, a direção do sindicato foi afastada, algumas lideranças presas, cassadas e torturadas. O esfacelamento das indústrias têxteis se arrastou até os anos 70, com a falência das pioneiras. O projeto político arquitetado pela burguesia industrial brasileira contra as lutas operárias vencia, mas no bojo de sua vitória estava sua derrota econômica. Permaneceram os silêncios dos silenciados. Experiências de milhares de trabalhadores sem nenhuma oportunidade histórica de recuperação de sua memória, suas vivências, seus sentimentos, formas de pensamento, modos de vida. Milhares de mulheres, meninas e adolescentes relegadas às notas de rodapé do discurso histórico oficial. A política econômica suprime a força que os historiadores tentam resgatar.

Os relatos e registros

Além das referências teóricas, algumas fontes imprescindíveis para o resgate de parte dessa narrativa, foram proporcionadas por entrevistados que disponibilizaram seus arquivos pessoais, especialmente o ex-vereador, Antonio Galdino. Esses arquivos são formados por panfletos, propagandas de chapas concorrentes à diretoria do sindicato, acordos salariais, editais, livretos da federação dos têxteis (FIFIT), artigos e matérias publicadas em vários jornais locais disponíveis no Museu Histórico e Cultural de Jundiaí, além dos próprios depoimentos de alguns ex-militantes sindicais. Entre os jornais estão A COMARCA (1945-1962), A FOLHA (1944-1957), DIÁRIO DE JUNDIAÍ (1962-1964), NOTÍCIAS HOJE (órgão do PCB, 1953 e 1959), JORNAL DA CIDADE (1983, 84 e 86), A GAZETA ARGOS (da empresa Argos Industrial, setembro de 1953), além da REVISTA JUNDIAÍ (1952, 1961-62).

Várias outras publicações do poder público, relatórios de gestão, álbuns históricos comemorativos, documentos da igreja católica, colaboraram para a tarefa de resgatar dados sobre a realidade política, econômica e social da cidade de Jundiaí nas décadas de 40 a 60. Como limite, o trabalho de pesquisa e investigação resvala na indisponibilidade de fontes orais que ajudem a resgatar o cotidiano das fábricas e fazer emergir o que foi vivido.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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