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Um Planetário de Erros

Edward Palmer Thompson é considerado por muitos o maior historiador inglês do século XX e um dos mais influentes intelectuais contemporâneos. Uma de suas principais obras, “A miséria da teoria – ou um planetário de erros”, escrita em 1978 e publicada no Brasil em 1981, combate o idealismo e o tradicionalismo teórico da teoria marxista de base estruturalista, considerando-a desvinculada da realidade concreta dos sujeitos históricos, os trabalhadores. Seu conceito de “experiência”, enquanto uma ruptura com o dogmatismo economicista marxista, sugere que os discursos e vivências próprios dos trabalhadores é que devem ser observados na dinâmica histórica, em termos de subordinação à dominação ou resistência à mesma, para ensejar processos de transformação social. O peso desta abordagem teórica sobre a história social e a história cultural nas décadas posteriores foi imenso. No final de sua vida, Thompson foi uma das primeiras vozes contra o discurso neoliberal, cujo ensaio prático na Inglaterra se deu sob o governo de Margaret Thatcher.

Tomo por empréstimo o subtítulo desta obra (um planetário de erros), para promover aqui, brevemente, uma reflexão sobre o tempo presente. Provavelmente boa parte dos brasileiros esteja afetada em seu ânimo diante dos acontecimentos políticos dos últimos meses. A história recente não produziu efeitos tão perversos para o coletivo quanto agora. Infelizmente, estamos cercados por mediocrizações políticas, expressas em ações governamentais promovidas por agentes públicos, em todos os poderes e níveis. No chão da sociedade, mesmo com inúmeros avanços na consciência política após o fim do regime militar, percebemos um recrudescimento do discurso e de práticas conservadoras que impregnam o imaginário social, produzindo efeitos de poder inimagináveis anos atrás. O desmantelamento de conquistas sociais de décadas, promovido por uma classe política que ocupou o poder por meio de fisiologismos e articulações imorais, são os resultados mais perversos.

Noutra ponta do tecido social, verifica-se o que apontou Michel Foucault, acerca da instalação constante de micro poderes, que se movimentam à nossa volta e que estão sujeitos e subordinados a poderes maiores. Na vida política, no cotidiano das organizações de todos os tipos, há sujeitos sociais utilizados para o serviço sujo, subalternizados que estão aos interesses dos que efetivamente controlam o poder. A perda da decência não é privilégio apenas das camadas dirigentes. Trata-se de um complexo processo de contaminação ideológica que elimina a seriedade moral em todos os cantos da vida social.

Mesmo com toda força do ideário emancipatório, a crise do sentido de esperança é visível entre nós. No entanto, não podemos creditar aos mecanismos históricos de manipulação da atualidade um poder para além do tempo. A história é um processo contraditório de mudanças. Mesmo que no momento presente verifiquemos forças aparentemente instransponíveis e que, de fato produzem efeitos de dominação bastante poderosos, não há evidências de que estas forças tenham garantida permanência.

Os erros presentes na dinâmica deste processo podem ser avaliados a partir de vários referenciais teóricos. Das ciências sociais à filosofia, da economia política ao discurso educacional, podemos extrair análises que fundamentem a nossa prática para que as condições perversas da atualidade possam ver diminuídas as suas forças.
Há que se reavaliar nossa compreensão sobre a política, para que ela seja vista para além do campo institucional, enquanto mobilização de consciências e corações em distintos espaços e organismos da sociedade. É notório que a desesperança nos cerca. Mas também é que há um universo, um “planetário de erros” nas situações que se endereçam ao conjunto da sociedade, capitaneadas por grupos, classes e organizações sem a menor consciência do que significa uma cultura política mínima.

Erros de base nas estratégias de organização social, ao desvalorizar ativos humanos e supervalorizar ativos financeiros em nome do bem público e das organizações. Na própria economia política encontramos análises sólidas sobre os fins mais preservacionistas da base produtiva e da vida social, contrárias à especulação e à selvageria contra direitos sociais.

Não há como garantir sobrevivência civilizacional num quadro como este. Mas não há como arrefecer o espírito de resistência, seja por meio do trabalho intelectual ou por meio do compromisso de base nas organizações da sociedade civil.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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