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Uma Simples Caneta

Faz algumas semanas dirigi-me a um estabelecimento comercial e, na saída, sem querer, deixei cair do bolso uma caneta de estimação que havia acabado de ganhar de colegas de trabalho, como um presente do dia do professor. Ao chegar em casa percebi o ocorrido e voltei ao local, imaginando que a caneta havia caído no chão do estacionamento. Dito e feito. Fui ao balcão perguntar para a atendente e ela disse ter visto alguém se abaixar no estacionamento e pegar um objeto. Mas não o deixou no balcão, como eu esperava. Objeto de valor sentimental, que não se substitui.

Em tempos em que a crucificação pública de qualquer pessoa se torna praxe, por motivos os mais variados e a saga pela destruição moral do outro permeia a maldade implícita como potencial na condição humana, este episódio me colocou a refletir. Somos ávidos condenadores, mas não hesitamos em agir de maneira talvez impensada em momentos em que a honestidade nos sugere agirmos diferente. Uma simples caneta? Poderia ter sido devolvida no balcão. Muitos anos atrás escrevi neste mesmo espaço o grande exemplo de um amigo estimado, que ao encontrar uma carteira com dinheiro na rua a devolveu numa delegacia. Exemplo que não é incomum, porque pessoas de bem temos aos montes. Assisti recentemente a um vídeo de boas práticas éticas publicado na Rússia. Velinhas sendo ajudadas a atravessar a rua, criança ajudando idosos, motoristas parando para animais assustados ou pessoas ajudando a empurrar o carro de desconhecidos, dentre outras cenas.

A justiça é cega, dizem. Diria que o poder é cego e que a justiça é um braço do poder, por vezes exercido com maestria pelos que se interessam em não ser justos. A justiça popular parece variar conforme o tom de nossa humanidade: condenamos “políticos corruptos”, mas hesitamos em devolver uma simples caneta. Como disse, não é regra geral. No campo da ética, os grandes especialistas apontam que há sempre a possibilidade de escolhas. Os contextos nem sempre são analisados. Em muitas situações, aparentemente sem pensar, cidadãos comuns se valem da lei da vantagem: alguém perdeu uma caneta, o que devo fazer? Achado não é perdido, diz o velho lema. E assim caminha nosso senso moral, ao sabor das perversas influências do meio cultural. De caneta em caneta, vamos falando uma coisa e fazendo outra. Típico do contraditório humano. O que fazer?

Desprezos à capacidade reflexiva à parte, as escolhas éticas dependem em muito de nossa capacidade racional, que tem ficado à margem, já que a sanha pragmática tem maior peso em relação ao pensar. Abobalhados cidadãos antiéticos são fruto de pouca, realmente pouca capacidade de escolher racionalmente.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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